Foram 18 filmes em 4 dias e meio. Poderia ter sido mais, mas no último dia eu já estava um pouco cansado – ou talvez isso se deva ao fato de eu ter escolhido somente filmes fracos na saideira. O saldo não foi espetacular, mas me possibilitou alguma diversidade: pelo menos três filmes excelentes, umas quatro lixeiras completas, e no meio de campo alguns trabalhos interessantes.
Num determinado momento da maratona senti-me como Fernando Meirelles, que vive perdendo seus roteiros cheios de anotações. Não perdi roteiro nenhum, só o livrinho da Mostra com todas as minhas anotações de horários e sessões. O livrão (que aparece na foto) é bem mais informativo, mas ao mesmo tempo sacana. Algumas sinopses entregam praticamente todas as histórias dos filmes! Por isso, depois de algum tempo, desisti de ler as sinopses completas. Julgava os filmes pelas fotos, pelas três primeiras linhas do texto e pela biografia do diretor. E isso me levou a uma sessão que, tivera eu sabido do que se tratava, jamais teria entrado na sala...
Mas tudo bem. Seguindo o padrão, vão aí as minhas impressões sobre os longas vistos, na ordem em que foram assistidos.
Latidos da Tarde (Zhang Yuedong, 2007)
Com: Han Dong, Chu Chen, Gou Zi, Gu Qian, Quan Ke
Bobagem chinesa abissal filmada em vídeo digital, que envereda pelo tema do absurdo com um surrealismo que não chega a absolutamente lugar algum. É, basicamente, uma daquelas idéias malucas que renderiam um curta-metragem de no máximo cinco minutos, mas que alguém teve a "brilhante" (merda também brilha, dependendo da incidência e do ângulo da iluminação) idéia de transformar num longa. Um vagabundo anda pela cidade com um desejo irrefreável de fincar postes no chão, sonhando com transeuntes e aparecendo nas cenas de outros personagens, as quais não têm quase nada a ver umas com as outras. Aparentemente, em momentos de decisão do roteiro, ouve-se o latido de cães que nunca são vistos. Pelo menos uma coisa positiva pode-se dizer sobre esta porcaria: eis aí uma fenomenal máquina do sono.
Os Fragmentos de Tracey (Bruce McDonald, 2007)
Com: Ellen Page, Julian Richings, Maxwell McCabe-Lokos, Ryan Cooley, Ari Cohen
O diretor leva o conceito de fragmentos do título do filme ao extremo, editando-o como se fosse uma seqüência enorme de recortes do drama de uma adolescente de 15 anos ignorada pelos pais, judiada pelos colegas de escola e aparentemente responsável por uma tragédia recente na família. A musa indie Ellen Page estrela mais uma história de menina desajustada, desta vez embrulhada num pacote que mistura drama, suspense e um pouco de humor negro. Nem tudo o que a garota diz é verdade, mas as verdades que importam estão muito enraizadas nos desgastes de seus relacionamentos para que possam ser notadas por aqueles que podem ajudá-la. A narrativa é entrecortada e espasmódica, e a edição do filme força um pouco a mão em algumas seqüências de montage, mas o resultado é no mínimo interessante.
Armadilha (Srdan Golubovic, 2007)
Com: Nebojsa Glogovac, Natasa Ninkovic, Anica Dobra, Miki Manojlovic, Marko Djurovic
O título do filme é bastante apropriado, mas o que mais se encaixaria na história seria mesmo "tragédia". O drama é muito bem engendrado e consegue produzir um ótimo conflito entre o certo e o errado, discorrendo com competência sobre até que ponto alguém de moral irretocável é capaz de ir para proteger sua família. Mladen (Nebojsa Glogovac) é um engenheiro com esposa e filho, subitamente surpreendido pela descoberta de que o garoto tem uma doença terminal e precisa de uma grande soma para ser operado. A esperança só chega quando um homem misterioso lhe faz uma proposta difícil em troca de todo o dinheiro. O filme se beneficia das sólidas interpretações dos atores principais, o que compensa a inexplicável quantidade de cenas em que o microfone do boom aparece na tela.
Fantasmas (Jean Paul Civeyrac, 2001)
Com: Guillaume Verdier, Dina Ferreira, Emilie Lelouch, Céline Bozon, Serge Bozon
De difícil assimilação e identificação, com um protagonista que não inspira empatia e uma narrativa propositalmente solta, Fantasmas lembra os filmes mais oníricos de Jean Rollin, só que sem o sangue. Produzido depois do ano 2000, parece que foi na realidade feito na década de 70. A premissa demora para ser captada, mas é interessante: pessoas estão desaparecendo sem explicação alguma em Paris, enquanto alguns recebem visitas constantes de entes queridos que já morreram. Ligando tudo isso, um jovem sem rumo na vida (Guillaume Verdier) abandona a namorada e vai para a cidade, na esperança de conseguir alguma coisa com a ajuda do primo. O diretor Jean Paul Civeyrac, agraciado com uma retrospectiva de quase toda sua filmografia na 31ª Mostra, concebe seqüências fenomenais em uma só tomada – como a dança da coroa com todos os amantes de sua vida – e demonstra aqui um estilo lento, contemplativo e obviamente introspectivo demais em suas intenções.
O Orfanato (Juan Antonio Bayona, 2007)
Com: Belén Rueda, Fernando Cayo, Roger Príncep, Geraldine Chaplin, Mabel Rivera
Conto macabro que pega o espectador de jeito com alguns bons sustos e uma inesperada veia dramática, daquelas propensas a verter lágrimas da platéia. Para um filme que é capaz de ser assustador e tocante ao mesmo tempo, O Orfanato não deve ser subestimado. Mulher em seus quarenta anos (Belén Rueda) muda-se com o marido e o filho pequeno para o orfanato onde ela morou quando criança, um casarão que eles pretendem reformar para abrigar mais garotos. As coisas começam a dar errado quando seu filho passa a exagerar nas histórias sobre os amiguinhos imaginários. Lembrando bastante outro ótimo horror recente (Os Outros), o roteiro impecável tem méritos próprios, adornado por uma bela fotografia e uma excelente trilha sonora. Estréia de respeito de J.A. Bayona, que vinha de dirigir videoclipes e aqui é apadrinhado por ninguém menos que Guillermo Del Toro.
Os Otimistas (Goran Paskaljevic, 2006)
Com: Lazar Ristovski, Tihomir Arsic, Nebojsa Glogovac, Mira Banjac, Ivan Bekjarev
São várias historietas sem vínculo algum umas com as outras, apesar das aparências – o animador do ônibus do último conto se parece com o hipnotizador do primeiro, mas somente porque os dois personagens são interpretados pelo mesmo ator. Com exceção do quarto episódio, que destoa do todo ao mostrar uma incômoda cena de estupro, o tom geral é de farsa, com boas risadas reservadas ao longo do caminho. Em especial na aventura de dois médicos que atendem ao chamado de um empresário cujo filho é um serial killer... de porcos! Segue-se o conto do rapaz que gasta todo o dinheiro do funeral do pai em caça-níqueis, em outra ótima faceta cômica do filme. Os personagens otimistas, por assim dizer, dividem-se entre otimistas inocentes, crédulos, cegos, covardes e verdadeiros, em passagens cuja óbvia mensagem jamais abandona uma certa acidez dramática.
Dente de Navalha (Patricia Harrington, 2006)
Com: Doug Swander, Kathleen LaGue, Simon Page, Matt Holly, Adam McCrory
O que poderia salvar uma produção classe Z sobre um monstro mutante que ataca pessoas próximas a um pântano lamacento? Sangue, muito sangue, garotas gostosas aos montes e uma boa dose de bom humor. Infelizmente, com exceção do sangue, não há nada mais que justifique essa imensa baboseira, filmada com desleixo e interpretada de forma hedionda por uma trupe de despreparados. Convergem para o tal pântano uma equipe de canoagem, dois fugitivos da prisão, um professor esquisito e seus estagiários, um policial do controle de animais e sua ex-esposa, a xerife da cidade. O objetivo é caçar e exterminar uma enguia assassina gigante. A concepção visual da criatura até que não é tão infeliz, mas o suspense é amador, as situações são em sua maior parte estúpidas e os efeitos especiais quase sempre deprimentes.
Sombras da Noite (Nasser Bakhti, 2006)
Com: Martin Huber, Hicham Alhayat, Gaspard Boesch, Diarra Damanta, Madeleine Piguet
O gênero da crônica urbana com vários personagens distintos compartilhando a narrativa já está há muito tempo estabelecido. Há quem discorde, mas este é o estilo de filme que mais facilmente consegue surpreender o espectador quando realizado de forma correta. Sombras da Noite é um ótimo exemplar do gênero, utilizando uma metrópole européia como cenário para seus personagens: uma dupla de policiais veteranos atravessando problemas em seus respectivos casamentos, um imigrante africano ilegal que sonha em ser jogador de futebol profissional, um imigrante árabe legalizado mas desiludido e uma viciada sem qualquer perspectiva na vida (Madeleine Piguet, numa performance extraordinária). Há interessantes interpretações para o isolamento e a solidão a que as pessoas ficam submetidas em seu cotidiano, seja ele num país estrangeiro ou em seu próprio país. Um filme que passa um pouco do ponto ideal de término em seu final, mas que ainda assim mostra-se sólido e interessante.
Kimera - Estranha Sedução (Paul Auster, 2007)
Com: David Thewlis, Irène Jacob, Sophie Auster, Michael Imperioli
Além do significado mitológico, a palavra "kimera" do título em português denota composições fantásticas, utópicas ou oníricas. Imaginem um lugar isolado, um idílio para o relaxamento e a reflexão, habitado unicamente por você. Se você for um escritor de sucesso procurando pela próxima história, não há lugar melhor para se estar. Imagine se, certo dia, uma mulher insinuante aparece do nada ao seu lado, na cama, sem explicação alguma. Seu passado é um mistério cuja solução não está à vista, mas as conseqüências de tamanha proximidade não são nada difíceis de se adivinhar. A ambientação de fábula amorosa é desenvolvida com elegância, graças à beleza de Irène Jacob e ao bom humor proporcionado por Michael Imperioli, o vizinho aspirante a escritor.
Só por Hoje (Roberto Santucci, 2007)
Com: Cláudio Gabriel, Silvio Guindane, Mônica Martelli, Tarcísio Filho
Thriller brasileiro que foge um pouco dos estigmas geralmente associados ao nosso cinema quando o assunto é cenas de ação. No Rio de Janeiro, dois jovens da periferia que vivem de pequenos delitos são pressionados por um traficante. Em desespero, eles raptam uma mulher em seu carro para obter o dinheiro que precisam. Para piorar, há um motivo mais sério para tudo o que está acontecendo nas vidas destas pessoas. Bastante tenso, o filme é dotado de uma crítica social que não se aprofunda demais nas mazelas associadas, mas garante uma viagem interessante por entre os medos de quem vive do lado de cá e de quem vive do lado de lá do vidro blindado de um carro de mais de cem mil reais.
Longe Dela (Sarah Polley, 2006)
Com: Gordon Pinsent, Julie Christie, Olympia Dukakis, Kristen Thomson, Wendy Crewson
Impressionante trabalho de estréia na direção da atriz Sarah Polley (a mesma que, por exemplo, se ensopou de sangue em Madrugada dos Mortos). Cadenciado, sutil, bonito e, acima de tudo, sensível a ponto de fazer a platéia compreender com senso de dignidade as conseqüências de uma doença devastadora como o mal de Alzheimer. Grant (Gordon Pinsent) é o marido que, já no final da vida, precisa cuidar da condição degenerativa de seu grande amor (Julie Christie), uma mulher ainda encantadora, forte e cheia de vida. Lenta e dolorosamente ele a vê se distanciar, numa situação que se acelera quando ela decide se internar numa instituição especializada. Julie Christie merece um Oscar por seu desempenho, o que não quer dizer que seu parceiro em cena fique muito atrás. Um filme excepcional.
O Búfalo da Noite (Jorge Jernandez Aldana, 2007)
Com: Diego Luna, Liz Gallardo, Gabriel González, Irene Azuela, Camila Sodi
A prosa de Guillermo Arriaga, roteirista incensado nos últimos anos por sua parceria com Iñárritu em filmes como Amores Brutos, 21 Gramas e Babel, começa a dar sinais de cansaço com este mistério pretensioso, que abusa dos cacoetes já conhecidos do escritor (a narrativa entrecortada é a que mais se sobressai) e resulta numa bagunça praticamente sem sentido. A história gira em torno de um rapaz (Diego Luna) que, ao namorar a garota do melhor amigo, piora sua fraca condição mental e aparentemente provoca o suicídio do colega. Nem mesmo uma trinca de belas atrizes bem desinibidas consegue manter o interesse numa história que em nenhum momento se paga. Diego Luna não inspira empatia, e foi uma escolha equivocada para o papel do protagonista (provavelmente imposta, já que ele co-produz o filme). E Arriaga precisa, urgentemente, adquirir algum senso de humor.
Cargo 200 (Alexey Balabanov, 2007)
Com: Agniya Kuznetsova, Aleksei Poluyan, Leonid Gromov, Aleksei Serebryakov, Natalya Akimova
Cuidado ao assistir este filme, principalmente se isso ocorrer por acaso. Altamente esquizofrênico e imprevisível, Cargo 200 inspira-se em fatos reais (!) e lembra muito as alegorias mais bizarras já feitas por cineastas como David Lynch e Joel Coen. Em sua maior parte a história é uma comédia, o que não significa que não haja passagens díspares envolvendo estupro, violência, profanação e muita, muita misoginia psicótica. Situado no ano de 1984, em plena fase de transição da sociedade russa em geral e em meio à crise militar com o Afeganistão, o roteiro envolve um professor de ateísmo científico voltando para casa, uma fazenda habitada por um grupo de caipiras malucos, um casal de adolescentes idiotas perdidos na noite e um general psicopata. Cargo 200 refere-se ao carregamento de mortos no conflito com o país vizinho, regularmente recebido pelas tropas russas em aviões cargueiros. Nada muito a ver com o cerne do filme, um verdadeiro deleite para quem gosta dos estilos de Lynch e Coen.
Antes que Eu Esqueça (Jacques Nolot, 2007)
Com: Jacques Nolot, Bruno Moneglia, Lionel Goldstein, Marc Rioufol, Bastien d'Asnières
Para o público em geral, é fato que o cinema francês ainda carrega a chaga de ser extremamente chato e lerdo. Antes que Eu Esqueça ajuda a prolongar essa concepção ao apresentar um conto que não sai do lugar sobre um senhor homossexual (o diretor Jacques Nolot) que, após perder o amante mais velho, passa a se questionar sobre o sentido da vida. Com umas tiradas esparsas aqui e ali, que fazem alguma graça do universo gay na terceira idade, o que se vê é uma interminável e ininterrupta falação sem sentido, ocasionalmente interrompida pela rotina morta do protagonista e pelos hábitos típicos dos entendidos. Há ainda um grande contraste: como um homem que odeia ler aparentemente passa todo seu tempo livre escrevendo?
Nome Próprio (Murilo Salles, 2007)
Com: Leandra Leal, Gustavo Machado, Rosane Holland, Juliano Cazarré, Martha Nowill
Em Nome Próprio, Leandra Leal encara com a cara e a coragem o papel de uma blogueira porra-louca, intensa e auto-destrutiva em seu universo fechado e egoísta. O filme não consegue, ou talvez simplesmente não quer, que sua protagonista saia do círculo emocional vicioso em que se vê encurralada. Nele, a solidão é sublimada e os encontros tratados como locomotivas desgovernadas, em cujo centro está uma mulher adolescente mimada, frívola, incapaz de se relacionar com o próximo sem lhe causar algum transtorno. A narrativa é inspirada em relatos de blogs e possui qualidades meramente técnicas, já que a história jamais sai do âmbito do redundante e cansa a platéia com uma duração excessiva.
Luxury Car (Chao Wang, 2006)
Com: Yuan Tian, Youcai Wu, He Huang, Yiqing Li
Um professor de primário chega à cidade para se hospedar na casa da filha e procurar pelo filho há muito desaparecido, como último desejo da esposa doente. A realidade em que a filha vive, porém, é para ele algo completamente desconhecido: a moça trabalha num dos prostíbulos da metrópole, e torna-se a causa da desavença entre seu cafetão e um cliente mafioso. A tela se enamora pela belíssima atriz Yuan Tian, de tão fotogênica que ela é. O ator que interpreta seu pai, por sua vez, consegue transmitir muito bem a dignidade e a sabedoria de um professor com muita experiência de vida. É uma pena que o drama seja carregado de uma atmosfera mundana que infelizmente não o deixa ascender a uma categoria mais nobre.
Caótica Ana (Julio Medem, 2007)
Com: Manuela Vellés, Charlotte Rampling, Bebe, Asier Newman, Nicolas Cazalé
É triste acompanhar a bagunça na qual esse filme promissor se transforma à medida em que ele se aproxima do final. Provavelmente sem conseguir o efeito desejado para a história de Ana, Julio Medem joga uma bolha de bizarrice na cara da platéia, na esperança de extrair dela um mínimo da reação que não pôde ser obtida ao longo de toda a história. A personagem principal é uma jovem pintora descoberta morando nas cavernas por uma benfeitora das artes, que a leva para Madri para conhecer o mundo e expressar seu espírito livre. Os contornos espíritas do filme são capazes de provocar bocejos pela pieguice e pela ínfima carga dramática, fazendo com que a obra se arraste. Pelo menos a protagonista é bonita, num trabalho onde caótico é o filme, não sua personagem.
En la Ciudad de Sylvia (José Luis Guerín, 2007)
Com: Xavier Lafitte, Pilar López de Ayala, Michaël Balerdi, Laurence Cordier, Tanja Czichy
Filmes de arte às vezes são facas de dois gumes, por isso En la Ciudad de Sylvia me deixou confuso, extremamente confuso. Quando me distancio da história, chego a achá-la magnífica em sua incompletitude, em sua singela declaração de amor ao amor não correspondido. Ao mesmo tempo, enfureço-me com a lentidão e o fato de que todo o filme poderia ser muito bem condensado num curta-metragem de dez minutos. Não há história. Há um personagem obcecado, uma cidade européia romanticamente quintessencial e uma procura incessante por um rosto feminino perdido na multidão. Com uma cinematografia primorosa e uma edição de som que acaba se instalando no subconsciente do espectador, essa pequena alegoria fílmica faz um papel inesperado ao retratar a procura poética. Que pode ser linda, mas somente sob determinados estados de espírito.
Texto postado por Kollision em 3 de Novembro de 2007