Stanley Kubrick foi um cineasta único, cuja filmografia é uma das mais consistentes no quesito qualidade × quantidade. Isso porque ele não fez muitos filmes, mas dos poucos que fez nenhum é ruim, e vários podem ser facilmente enquadrados como obras-primas de todos os tempos. Mais conhecido por recriar a ficção científica com 2001: Uma Odisséia no Espaço ou por engrandecer o gênero épico com Spartacus, por exemplo, um de seus filmes menos conhecidos é Dr. Fantástico, uma comédia de humor negro que extrapola os limites do próprio gênero ao satirizar a corrida nuclear de forma sublime. O filme também é um marco por trazer o comediante Peter Sellers em três papéis diferentes, que sem sombra de dúvida atestam uma versatilidade excepcional do ator cujo papel mais conhecido é o do palerma inspetor Clouseau em A Pantera Cor-de-Rosa.
Um general paranóico (Sterling Hayden) decide de uma hora para outra ordenar um ataque nuclear à Rússia, para o espanto de seu subordinado, o capitão Mandrake (Peter Sellers). Logo a notícia chega aos ouvidos do eufórico general Turgidson (George C. Scott) e do presidente em pessoa (Sellers de novo), que decide chamar para a sala oval o embaixador russo e a seguir tentar minimizar a situação junto ao governante do país inimigo, que se encontra bêbado do outro lado da linha. Tentando a todo custo burlar os protocolos absurdos do ataque inédito e impedir a iminente hecatombe nuclear, o presidente se vê às voltas com a ameaça de uma retaliação ainda mais devastadora dos russos e tem que recorrer aos conselhos do Dr. Strangelove (o tal dr. Fantástico, mais uma vez Sellers), um tipo esquisito e cheio de cacoetes.
Dr. Fantástico era um filme destinado inicialmente a ser um thriller sério sobre a ameaça nuclear. A escolha pela comédia atesta o faro de Kubrick e seu instinto de vanguarda dentro da arte conhecida como cinema, pois a condução da história até seu desfecho bombástico é apenas um dos aspectos mais geniais do filme, que não se leva a sério em nenhum momento. Não é à toa que Dr. Fantástico é considerado por muitos o melhor filme de humor negro da história do cinema e uma das melhores comédias de todos os tempos. A concepção satírica dos diálogos é um deleite, o roteiro é coalhado de absurdos propositais que trazem à tona as características mais idiotas do sentimento anti-comunista vigente na época, e mesmo os soldados das forças armadas não escapam do escárnio concebido pelos roteiristas (um deles o próprio Kubrick). Os nomes da maioria dos personagens também são carregados de significados e trocadilhos propositalmente cômicos.
Peter Sellers interpreta três papéis, dos quatro que estavam originalmente destinados a ele. A platéia desavisada com certeza demorará algum tempo até perceber que é Sellers quem está por trás da careca do presidente dos EUA, tamanha é a sua metamorfose entre os personagens que interpreta. O piloto Kong (Slim Pickens) deveria ter sido também personificado por Sellers, que não pôde fazê-lo por ter se machucado durante as filmagens. No entanto, com seu fortíssimo sotaque texano, Pickens caiu como uma luva no papel. Como curiosidade, é neste filme que o ator James Earl Jones faz sua estréia no cinema.
O único porém em Dr. Fantástico são as cenas que mostram aviões em tomadas externas, com efeitos toscos que às vezes não escondem os fios que sustentam as maquetes. Detalhe mínimo num material que prima por alguns dos diálogos mais absurdamente satíricos já proferidos diante de uma câmera. Coisa de um dos maiores diretores de todos os tempos, que presenteou o gênero da comédia com uma pérola que merece ser conhecida por todo cinéfilo que se preze.
Na seção de extras do DVD há um making-of de 50 minutos com entrevistas atuais de elenco e equipe, um especial de 13 minutos que recapitula a carreira de Stanley Kubrick até a época da realização de Dr. Fantástico, entrevistas curtas com Peter Sellers e George C. Scott, galeria de pôsteres de divulgação, mini-biografias e os trailers de Dr. Fantástico, Limite de Segurança e Anatomia de um Crime. O problema maior é para o cinéfilo não entende inglês, infelizmente, já que todos os extras não têm nenhuma legenda em português. Para piorar, a legendagem do filme em si na edição brasileira do DVD da Columbia é um festival de erros de dar dó (principalmente nas transcrições dos nomes dos personagens).
Texto postado por Kollision em 26/Abril/2005 - Revisto em 14/Fevereiro/2006