O projeto começou quase despretensioso, como uma brincadeira entre Quentin Tarantino e sua musa, Uma Thurman, durante a produção do superestimado Pulp Fiction - Tempo de Violência. Ele logo evoluiu para um roteiro de mais de 200 páginas, e o estúdio tratou de sugerir a quebra do filme em dois, lançados com seis meses de diferença um do outro. Embora tipicamente Tarantino, ambos os filmes diferem radicalmente em tom e formato ao darem vazão à veia nerd do diretor, um declarado e alucinado fã dos filmes de artes marciais da década de 70, quase todos vindos de Hong Kong, a meca do sub-gênero de ação amado por muitos e defenestrado pelos críticos. O resultado é um trabalho de encher os olhos de quem partilha do mesmo gosto do diretor, numa trajetória de vingança deveras simplista mas extremamente estilosa e bem-humorada.
Narrativa mais crua e direta que a de Kill Bill - Vol. 1 é coisa rara no cinema contemporâneo. Mulher toda ensangüentada e grávida (Uma Thurman) recebe um tiro à queima-roupa de um homem misterioso chamado somente de Bill (David Carradine). Logo depois ficamos sabendo que ela era uma noiva prestes a se casar, e também uma assassina mortal que fazia parte de um grupo de mercenários que a traíram, inclusive engendrando seu assassinato no dia de seu casamento. Com seqüências que vão e vêm no tempo, a "noiva" empreende sua vingança contra duas de suas ex-companheiras de trabalho, a então dona de casa Vernita Green (Vivica A. Fox) e a chefe da máfia japonesa O-Ren Ishii (Lucy Liu). Os demais algozes da anti-heroína, a loira fatal Elle Driver (Daryl Hannah), o grandalhão Budd (Michael Madsen) e, claro, o próprio Bill, fazem pequenas aparições de luxo para aguçar a curiosidade da platéia, dando as caras mesmo somente em Kill Bill - Vol. 2.
Tire o que existe de cenas-chave do filme, e o que resta é um fiapo de história que praticamente todo mundo sabe de antemão qual é. Mesmo em sua simplicidade, o roteiro de Tarantino é esperto e coloca ingredientes sutis para aguçar a curiosidade do espectador e conclamá-lo a assistir ao segundo filme, em pelo menos dois aspectos principais: o nome da Noiva jamais é pronunciado (sendo substituído por um bipe irritante quando isso ocorre), e o vilão Bill faz uma revelação nada menos que bombástica antes do longa se encerrar. As sutilezas aparecem também na narrativa. Basta prestar atenção no início da história, por exemplo, para saber qual será o resultado do confronto final entre a Noiva e a mafiosa japonesa. A jornada é pontuada com uma trilha sonora que desencava coisas enterradas há anos, além de muitas características que sempre marcaram os filmes nos quais Kill Bill - Vol. 1 se inspira (como os zooms exagerados, a crueza das lutas e a valorização dos confrontos, precedidos por um inconfundível som de sirene sobre uma fotografia que pulsa vermelho-sangue).
Por falar em sangue, o que mais as pessoas se lembram quando o filme acaba é do exagero, um ingrediente que norteia todas as lutas e, principalmente, todo o sangue que jorra na tela. Mas não são só as acrobacias e as coreografias violentas que dominam a cenografia. O flashback do passado da assassina chinesa, narrado pela protagonista, é todo feito na boa e velha animação oriental típica. Há inúmeras referências embutidas na história, algumas delas tão obscuras que só os fãs mais hardcore de artes marciais conseguirão reconhecer. Tente encontrá-las, por exemplo, na inacreditável cena da luta da Noiva contra os 88 capangas mascarados de O-Ren Ishii.
É preciso reconhecer que não há muita substância no longa. Porém, como uma diversão calcada em extremos visuais, a experiência é ótima. Como brinde, o fã Tarantino deu um jeito de convocar o antigo ídolo Sonny Chiba para uma ponta importante e hilária. Uma Thurman veste o manto de musa e heroína com garra, mas é uma pena que Vivica A. Fox e a bela Julie Dreyfus tenham tão pouco tempo em cena.
A edição simples do DVD que faz parte do pacote que vem também com o segundo filme traz um making-of básico de 15 minutos, 9 minutos de cenas de bastidores, um videoclipe da tosquíssima banda japonesa "The 5,6,7,8's" (que toca na cena que precede a luta da noiva contra o batalhão de japas), uma galeria de fotos, trailer e também os trailers de Jackie Brown e Kill Bill - Vol. 2.
Revisto em DVD em 25-FEV-2007, Domingo - Texto postado por Kollision em 3-MAR-2007