Um dos poucos clássicos "cult" que realmente merecem todo o status que possuem, A Morte do Demônio (uma das traduções mais infelizes para um título estrangeiro em toda a história do cinema) continua a servir como modelo e fonte de inspiração para qualquer filme de horror que se preze. Trata-se de um marco sobre como produzir algo de qualidade com orçamento pífio, e como aproveitar as influências pré-existentes numa reciclagem que eleva todo o padrão de realização de um gênero. Não é à toa que Sam Raimi, estreando aqui na direção de um longa, evoluiu para responsabilidades inimagináveis na época de lançamento deste filme, notadamente o comando de um dos maiores blockbusters de todos os tempos, a adaptação de HQs Homem-Aranha.
Sustentar um longa-metragem com um fiapo de elenco e uma história praticamente inexistente é, sim, possível. Isto é o que fica evidente na noite que cinco amigos passam numa casa abandonada e caindo aos pedaços no meio da floresta. Por pura farra, eles acabam encontrando e ouvindo um disco com as estranhas gravações de um pesquisador que passara por ali em tempos remotos. Quando os espíritos maus da floresta são despertados nenhum dos jovens consegue mais sair do lugar e, um a um, todos sucumbem à fúria dos mortos, que laconicamente clamam para que os vivos se juntem a eles no além mundo.
A Morte do Demônio é a cereja no topo do bolo da vida universitária dos chapas Sam Raimi e Bruce Campbell. Campbell, no papel do herói Ash, ficou eternamente marcado pelos banhos de sangue aos quais foi submetido pelo amigo neste filme, e pelas caras e bocas que desenvolveu para o projeto. Ainda proibido e censurado em vários países, o longa rapidamente adquiriu a aura de maldito (no bom sentido, claro) e conferiu a Raimi a fama de cineasta promissor e inovador. Por motivos óbvios, os movimentos de câmera ousados são alguns dos aspectos técnicos mais lembrados quando se fala na obra de estréia do cara.
O principal motivo de porque, ainda hoje, este é o melhor exemplar da trilogia mais tarde rebatizada como Uma Noite Alucinante, está na sintonia impecável do material filmado com os conceitos básicos do melhor que o cinema de horror tem a oferecer. O início da história é igualzinho aos zilhões de outros pastiches de tema parecido. Basta, porém, a primeira cena emblemática aparecer para desnortear o espectador pelo resto da película: a curra de uma das personagens, levada a cabo pela floresta enfurecida. O impacto visual da aparição do primeiro zumbi é de um primor macabro que rivaliza com espetáculos de maior vulto como O Exorcista (William Friedkin, 1973). Esta e as demais passagens envolvendo mortos-vivos impressionam pela qualidade da maquiagem. O humor brota espontaneamente em vários momentos (na maior parte deles de forma bastante doentia), em meio a doses cavalares de gore, desmembramentos, perfurações e dilaceramentos de causar arrepios. O clímax traz alguns efeitos em stop-motion que destoam do espetáculo e quase comprometem o todo, mas a essa altura todos já estão anestesiados pelas explosões de sangue que literalmente escorrem pela tela.
Suplantar a escassez de recursos e a capacidade dramática quase inexistente do elenco é um dos trunfos da ambientação doentia do filme, que se inspira claramente em O Massacre da Serra Elétrica (Tobe Hooper, 1974), no mencionado O Exorcista e na onda de filmes de zumbi iniciada por George Romero no final da década de 60. Até mesmo referências mais obscuras parecem estar espalhadas ao longo da narrativa, como uma que remete visualmente ao Drácula de 1931 (Ash carregando sua amada vestida de branco, à la Bela Lugosi e Helen Chandler no clímax do clássico de Tod Browning).
O desrespeito pela qualidade do material digital na transposição do filme para DVD continuou na ocasião de seu relançamento pelo selo Spectra Nova. As legendas deficientes e fora de sincronismo foram vergonhosamente herdadas da edição anterior, o que é uma pena. Os extras também não mudaram, consistindo de biografias de Bruce Campbell e Sam Raimi, uma galeria de fotos, 20 minutos de cenas de bastidores e trailer.
Texto postado por Kollision em 26/Dezembro/2005