A mitologia do vampiro, em específico o clássico personagem conde Drácula, é tão difundida e conhecida que parece estar enraizada na cultura da humanidade há séculos. Ledo engano. É óbvio que histórias de vampiros existem há séculos, mas foi só no ano de 1897 que o romance Drácula foi publicado, sob a pena de um escritor irlandês chamado Bram Stoker. E o sucesso da extensa colagem de diários e registros em primeira pessoa foi instantâneo. Da literatura para os palcos de teatro a transição foi igualmente bem-sucedida, e daí para o cinema era só uma questão de tempo. Da era do cinema mudo o mais marcante filme baseado no romance foi Nosferatu (Murnau, 1922), que usou o mito criado por Stoker de forma livre, apenas trocando os nomes dos personagens e os locais da história.
O sucesso da peça teatral estrelada pelo húngaro Bela Lugosi entusiasmou a Universal, que decidiu filmar Drácula na aurora do cinema falado, quando ainda não era nem mesmo possível combinar a trilha sonora com os diálogos dos atores. O ano era 1931, em plena época pós-depressão, e um reinado se iniciava no cinema de horror como o conhecemos hoje. Drácula chegava às telas adequadamente personificado, infelizmente baseado mais na peça de teatro que no tétrico texto de Stoker.
Nesta versão, o corretor de imóveis Renfield (Dwight Frye) viaja à Transilvânia para negociar a venda de um imóvel inglês para um certo conde Drácula. Ao encontrar seu anfitrião, Renfield logo descobre que a intenção do comprador é outra. Drácula leva a cabo seu plano e chega à Inglaterra, envolvendo-se com a família vizinha à sua propriedade, detentora de um asilo de loucos e comandada pelo Dr. Seward (Herbert Bunston), pai de Mina Seward (Helen Chandler) e futuro sogro de John Harker (David Manners).
Exceto pela inversão de parentesco e pela exclusão de alguns personagens, o filme do diretor Tod Browning mantém uma certa fidelidade à linha principal do romance de Stoker (ao contrário de adaptações como O Vampiro da Noite, que mandam a estrutura concebida pelo autor irlandês às favas). Mas fidelidade nem sempre implica em qualidade de transposição. Enquanto a primeira meia hora do filme mostra-se um deleite, com uma ambientação extremamente competente nas seqüências da Transilvânia e no interior do castelo do conde, o filme patina em furos aberrantes no roteiro e num desenvolvimento confuso em sua parte final, culminando num desfecho abrupto e insatisfatório. Ainda assim, o filme mantém uma aura mágica que fascina e mantém seu status de clássico absoluto do cinema de horror. Como? Há que se louvar, por exemplo, a presença dos dois protagonistas do bem. O primeiro deles é Renfield, que sucumbe ao monstro e logo cede espaço ao dr. Van Helsing (Edward van Sloan), austero cientista e exímio conhecedor das características do vampiro. São eles que, ao lado da presença magnética de Bela Lugosi e dos cenários quase oníricos da primeira parte do filme, mantêm o interesse constante ao longo de uma obra que, sem sombra de dúvida, seria completamente esquecível sem a sua presença.
Bela Lugosi, por sinal, foi o grande responsável por definir a figura do vampiro como a conhecemos hoje. Por mais que tentemos nos desvencilhar de todas as influências e divisar de onde origina a imagem do vampiro clássico em nossa mente, sempre voltamos à persona de Lugosi. Pois foi ele quem deu o tom para tudo o que seria feito sobre os vampiros pelo resto do século, de desenhos animados a HQs, de filmes de baixo orçamento a superproduções. A despeito de todas as falhas técnicas de Drácula e da quase unanimidade quanto à má direção do ausente Tod Browning (muitos alegam que o diretor de fotografia e cameraman Karl Freund seria o verdadeiro responsável pelas melhores seqüências do filme), é inegável que a adaptação de 1931 estabeleceu um padrão definitivo para um gênero que estava apenas nascendo. Talvez até mais que o melhor realizado Frankenstein, produzido no mesmo ano e estrelado pelo rival Boris Karloff.
A faixa de comentários do filme, narrada pelo historiador David Skal, é uma aula sobre o cinema de horror clássico, e merece ser conferida na íntegra. O especial de pouco mais de meia hora sobre como Drácula foi levado às telas traz, além de depoimentos de Skal e de gente como Clive Barker e Rick Baker, declarações de vários descendentes de gente envolvida com o filme. Existe ainda a opção de se assistir ao filme com a nova trilha sonora composta por Philip Glass em 1999, preenchendo o silêncio remanescente da era do cinema mudo (as músicas originais só são ouvidas no início, no final e durante uma cena sem diálogos no meio do filme). Completam o pacote da primeira versão do DVD lançada pela Universal o trailer de cinema e uma galeria de fotos bem bacana.
Texto postado por Kollision em 16/Dezembro/2004