Refilmagens não são terreno estranho para Martin Scorsese, cujos Cabo do Medo (1991) e A Época da Inocência (1993) muito bem comprovam. Os Infiltrados baseia-se em Mou Gann Dou (ou Conflitos Internos, de 2002), um retrato da máfia chinesa de grande sucesso no circuito alternativo. Apaixonado pelo tema abordado em sua inspiração, Scorsese mais uma vez aposta em Leonardo DiCaprio como seu ator principal, após os valiosos esforços de Gangues de Nova York (2002) e O Aviador (2004). No fundo dos acontecimentos e encompassando tanto DiCaprio quanto o co-astro Matt Damon está o ícone Jack Nicholson, outro monstro do cinema que pela primeira vez trabalha sob a batuta de Scorsese.
O filmaço vai e vem entre as trajetórias do aspirante a policial Billy Costigan (DiCaprio) e do já policial Colin Sullivan (Matt Damon) na cidade de Boston. A família de Costigan tem um passado negro, o que torna seu perfil perfeito para uma missão de infiltração na casta mafiosa de Frank Costello (Jack Nicholson), solicitada pelos chefes da polícia secreta Queenan (Martin Sheen) e Dignam (Mark Wahlberg). Drogas, mercadorias valiosas e extorsão são algumas das atividades comandadas por Costello, cujo olheiro dentro da polícia é o certinho Sullivan. Incógnito para todos exceto para seus dois contatos dentro da polícia, o esquentadinho Costigan tenta ganhar a confiança do chefão enquanto Sullivan vai se enroscando cada vez mais para proteger um criminoso que ele considera como um pai, num jogo de gato e rato onde basta muito pouco para que a merda voe pelo ventilador a qualquer momento.
Scorsese trata seus personagens como titãs num drama de proporções consideráveis sobre o universo policial, o crime organizado e o conceito de lealdade. O mal está dentro do bem, e o bem não existe sem o mal enraizado em suas entranhas. As fronteiras entre bandido e mocinho são forçadas ao máximo, envolvendo até mesmo personagens virtualmente intocáveis em suas caracterizações. Quem espera esclarecimentos fáceis ou elucidações concretas sobre tais nuances da narrativa vai com certeza cair do cavalo. As descobertas e as dúvidas que as acompanham são, no entanto, parte de uma fantástica cadeia de eventos carregados de tensão, que não deixam pedra sobre pedra e extraem o máximo do desempenho de seu elenco. Principalmente Leonardo DiCaprio, que parece finalmente ter encontrado o balanço perfeito numa interpretação para seu "padrinho" Scorsese.
A violência, um dos temas mais recorrentes de toda a filmagrafia do cineasta, é retratada com a pompa que seria esperada do homem por trás de petardos como Taxi Driver e Os Bons Companheiros. Ela é crua e é presença constante, permanece ameaçadoramente incubada e explode em rompantes de fúria inesperados. No universo criminoso de Boston, o personagem mais interessante deste drama movido a mentiras e dissimulação é mesmo Billy Costigan, por quem a platéia á levada inadvertidamente a simpatizar e, com o decorrer do filme, a torcer veementemente. Seu passado é uma merda, seus superiores são uns sacanas, o próprio sistema é uma incógnita no que diz respeito ao seu futuro dentro da organização e sua vida pende por um fio durante a maior parte do tempo. No meio de tanta sujeira e podridão, ele é basicamente o que sustenta a idéia de que ainda pode haver esperança para um conflito aparentemente sem solução.
Não sei se foi intenção do diretor fazer alguma referência ao Coringa, lendário papel de Jack Nicholson no Batman de Tim Burton (1989). Sendo o filme baseado em algo que já foi feito anteriormente, pode até ser. Depois da dita referência, o longa entra numa espiral de violência que chega até a arrancar alguns risos da platéia. É óbvio que o filme não se transforma numa comédia, mas o desfecho sangrento e completamente inesperado dá o troco a quem é de direito, e não conclui absolutamente nada sobre pelo menos um dos personagens. Mocinho ou bandido, quem sabe? Poucas vezes o cinema foi tão genialmente dúbio, e tão mortalmente cínico.
Visto no cinema em 12-NOV, Domingo, sala 6 do Multiplex Pantanal - Texto postado por Kollision em 17-NOV-2006