Ao evitar dirigir o terceiro filme seguido sobre uma personalidade real (O Informante, de 1999, e Ali, de 2003), Michael Mann entregou as rédeas da adaptação sobre a vida do bilionário Howard Hughes para o chapa Martin Scorsese, contentando-se com a cadeira de produtor. Scorsese, reconhecidamente um dos melhores diretores de nosso tempo, soube aproveitar a oportunidade e mergulhou a fundo na história de uma das personalidades mais extremas do século XX, com a ajuda de seu novo alter-ego Leonardo DiCaprio (astro do filme anterior do diretor, Gangues de Nova York). A empreitada de diretor e equipe resultou num belíssimo filme de quase três horas de duração, repleto de passagens marcantes e retratos fiéis das indústrias da aviação e do cinema, os principais interesses do bilionário no período de sua vida iluminado pelos holofotes de Scorsese.
Como um corte da vida de uma pessoa, O Aviador retrata um trecho específico da vida de Howard Hughes, o jovem que herdara uma herança de bilhões de seus falecidos pais aos 18 anos de idade. O filme se inicia em meio à balbúrdia da filmagem do hoje clássico épico de aviões Hell's Angels no final dos anos 20. O filme fez genuíno e merecido sucesso, mas seu arrecadamento nunca chegou a cobrir o exorbitante custo (para a época) de quase 4 milhões de dólares. A seguir, a história acompanha a vida de Hughes até pouco antes da década de 50, quando seus problemas de saúde adquiriram um papel cada vez mais intenso em sua vida pessoal e profissional. No percurso, o bilionário flerta com a fama cinematográfica a duras penas, namora estrelas de cinema, bate recordes de vôo, funda um empresa de aviação, bate de frente com o monopólio desta indústria, discute com políticos corruptos e luta contra as próprias manias, cujo impacto aumenta assustadoramente à medida que o filme de aproxima do fim. A síndrome de TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo) era o seu lado negro, numa época em que a doença era praticamente ignorada pelo meio médico e suas vítimas sofriam em quase absoluto silêncio. Responsável por algumas das mais tensas seqüências do filme, a doença é mostrada como a causa primordial da queda de Hughes (o que corresponde à verdade), muito embora esta queda não chegue a ser mostrada em toda a sua plenitude.
O Aviador é impecavelmente filmado, iluminado e renderizado de acordo com os estilos de fotografia cinematográfica que eram realizados nas diferentes épocas em que se passa o filme. O glamour da era áurea de Hollywood ganha uma transposição luxuosa, fazendo a alegria dos cinéfilos aficcionados pela época. Jean Harlow (Gwen Stefani, a vocalista da banda de ska No Doubt), Katharine Hepburn (Cate Blanchett), Ava Gardner (Kate Beckinsale) e Errol Flynn (Jude Law) são as personalidades mais facilmente reconhecíveis. Blanchett tem a maior participação como coadjuvante, e brilha ao capturar os maneirismos da estrela que gostava de se vestir à moda masculina, apesar de não ser tão bonita quanto a sua personagem na vida real. Por outro lado, Kate Beckinsale está atordoante de tão linda, mas não tem muito espaço para demonstrar uma maior envergadura em sua performance.
A maior paixão de Hughes, a aviação, responde pela cena mais violenta do longa, um dos vários acidentes pelo qual ele passou em sua carreira de piloto. De certa forma, é a partir deste ponto que as manias do bilionário começam a tomar maior vulto, levando-o ao cúmulo de se isolar num quarto durante algum tempo, no que foi seu primeiro colapso mental. É neste estado deplorável, por exemplo, que ele tem que se defrontar com seu concorrente da PanAm (Alec Baldwin), tendo pela frente ainda a ameaça do corrupto senador feito por Alan Alda. A esta altura do filme, fica então evidente a única deficiência de Leonardo DiCaprio ao interpretar Howard Hughes. A sua voz ainda soa adolescente demais, incapaz de dar vazão à amargura de um homem de meia idade de forma convincente.
É difícil aceitar facilmente a opção de Scorsese de interromper abruptamente a saga do bilionário cineasta e aviador num momento de lucidez, ainda que marcado pela sombra da doença. Se alguns subtemas tivessem sido encurtados um pouco seria possível mostrar, por exemplo, que Hughes comprou a RKO Radio Pictures em 1948 e quase levou-a à falência com seu estilo errático de gerenciamento. Houve ainda um casamento de verdade, um provável envolvimento com Nixon e o caso Watergate, e cerca de vinte anos de reclusão absoluta, com nenhuma aparição pública até a sua triste morte. Do jeito que está, e sendo baseado (com alguma liberdade, claro) em fatos reais, O Aviador entrega o que promete: a classe de Martin Scorsese atrás das câmeras a serviço da sensacional trajetória de um homem que parecia não conhecer limites.
Texto postado por Kollision em 23/Fevereiro/2005