Cinema

Ray

Ray
Título original: Ray
Ano: 2004
País: Estados Unidos
Duração: 152 min.
Gênero: Drama
Diretor: Taylor Hackford (Advogado do Diabo, Prova de Vida)
Trilha Sonora: Ray Charles, Craig Armstrong (Amor em Jogo, Procura-se um Amor que Goste de Cachorros)
Elenco: Jamie Foxx, Kerry Washington, Regina King, Clifton Powell, Harry J. Lennix, Bokeem Woodbine, Aunjanue Ellis, Sharon Warren, C.J. Sanders, Curtis Armstrong, Richard Schiff, Larenz Tate, Denise Dowse, Warwick Davis, Patrick Bauchau, Robert Wisdom, Terrence Dashon Howard, David Krumholtz, Wendell Pierce, Chris Thomas King, Willie Metcalf
Avaliação: 8

Ray não é um musical, e sim um drama. Mesmo assim, a música é tão essencial no filme que a impressão principal após uma sessão é que praticamente mais de 70% da película é música. Mais especificamente, a obra de um homem abençoado com um dom que abalou os alicerces da música negra americana no meio do século XX. Este homem é Ray Charles, que no filme biográfico de Taylor Hackford é personificado com uma proximidade assombrosa por Jamie Foxx, ganhador do Oscar de melhor ator por seu impressionante trabalho.

Como alguns outros imponentes filmes biográficos de sua temporada (O Aviador e Em Busca da Terra do Nunca), a história de Ray concentra-se sobre um determinado período da vida de seu personagem principal. O período escolhido pelo diretor compreende o início da vida profissional do músico longe da Flórida no início dos anos 50, seu casamento e suas mulheres, até seus dias de glória na Paramount, onde se detém após mostrar as conseqüências e os escândalos decorrentes de seu vício em heroína. No meio do caminho são inseridos flashbacks que revelam alguns fatos da traumática infância de Ray, como a morte de seu irmão menor e o horror da cegueira antes mesmo dele completar 10 anos de idade.

A narrativa clássica e linear do filme é quebrada aqui e ali pelos já mencionados flashbacks, fotografados em tons saturados e quase com um aspecto onírico, como uma forma eficiente e de fácil discernimento para retratar as lembranças de Ray. A segregação racial existente na época, e principalmente o modo como Ray reagia e se adaptava a ela, é escancarada logo no início, quando o músico é colocado num lugar reservado aos cidadãos "de cor" no fundo de um ônibus poeirento a caminho de seu primeiro emprego longe de casa, após mentir descaradamente para um motorista racista a fim de ganhar sua deturpada empatia. Sabemos que o músico mente pela expressão marota de Foxx, e porque nada mais sobre essa mentira é mencionado no decorrer do filme. A questão acerca da sua opinião sobre o racismo, no entanto, volta a ser esmiuçada, e de forma tocante, numa seqüência mais adiante.

O filme é simplesmente um deleite para os fãs do músico, e com certeza agradável para qualquer pessoa que curte música em geral. Cada canção que Ray acrescenta ao seu repertório ganha em tela um tratamento todo especial, algumas adquirindo até nuances 'videoclípticas' que rendem momentos onde dá vontade de saltar da poltrona e curtir o ritmo junto com a galera do filme. Afinal, não é todo dia que se pode acompanhar a trajetória do homem que foi o grande responsável por fundir o ritmo gospel com o rhythm'n'blues, o que lhe trouxe duras críticas da parcela mais conservadora dos EUA, tanto de negros quanto de brancos. O fato é que Ray Charles ajudou a criar os fundamentos da tal 'música do demônio' e, como o filme demonstra, sempre com um sorriso sincero no rosto.

É o próprio Jamie Foxx quem toca em todas as cenas ao piano. Ele teve aulas de braille e usou próteses nos olhos que chegavam a deixá-lo cego por até 14 horas durante um dia de filmagem. O cara trabalhou tão bem que parece desaparecer sob a pele de Ray Charles, que acompanhou todas as gravações e veio a falecer pouco antes do filme ser lançado. Acredito que isso configure um caso único dentro do cinema, sendo o filme de Hackford o maior tributo que Ray poderia ter recebido em vida. Os problemas que ele enfrentou durante a carreira, como o trauma da morte do irmão e o consumo de drogas, nunca chegam a se sobrepôr à alma do filme (que é a música). A sorte de Hackford e equipe, que conceberam um filme bonito, porém um pouco longo demais, é que exatamente no momento em que a película ameaça cair na chatice, Ray Charles entra em cena com suas composições mais famosas (como Georgia on my Mind e Unchain my Heart), resgatando a platéia da inicial catatonia dramática e narrativa na qual o filme se envereda em seu trecho intermediário.

Texto postado por Kollision em 20/Março/2005