Baseado num livro que já foi considerado "infilmável" por muita gente, Perfume ostenta várias particularidades que chamam a atenção. Uma delas é a própria dificuldade da adaptação para o cinema, uma vez que não é tarefa fácil transmitir a sensação do olfato com a mesma riqueza de detalhes que a literatura permite. Outra é o fato desta ser a produção mais cara já feita na Alemanha, terra natal do diretor Tom Tykwer. Por fim, há que se ressaltar a natureza da trama em si, que se coloca absolutamente do lado do desajustado protagonista num suspense dramático que, de acordo com os depoimentos daqueles que leram o livro, não cria concessões em relação ao texto original e tenta adaptá-lo da forma mais fiel possível. O que pode ser um tiro no pé – vide o exemplo do polêmico desfecho do clássico da ficção científica Guerra dos Mundos (de Haskin ou Spielberg, tanto faz).
Perfume é a história de Jean-Baptiste Grenouille (Ben Whishaw), que teria vivido na França do final do século 18. Um prodígio desde o nascimento, capaz de reconhecer e se nortear com um olfato superdesenvolvido, Grenouille cresce como um pária, sem desenvolver um lado social que o ajudasse a se relacionar com outras pessoas. Um inesperado incidente com uma desconhecida (Karoline Herfurth) inicia uma transformação irrefreável, onde o jovem desenvolve o desejo de guardar para si todos os odores do mundo, em especial as fragrâncias que exalam do corpo feminino. Adotado por um perfumista fracassado (Dustin Hoffman), Grenouille passa a aprender os métodos da arte da perfumaria e logo põe em prática seu plano psicopata, matando as mulheres para tirar o perfume natural de seus corpos e saciar sua obsessão pela fragrância ideal.
Impecáveis neste filme são os valores de produção, que reconstroem muito bem a imunda Paris da época, e a performance de Ben Whishaw, que entra na pele do psicopata e consegue atribuir-lhe humanidade suficiente para que a história não se transforme na glorificação de um assassino. Por humanidade entenda-se tudo o que advém da miríade de sensações de descoberta do protagonista, que aprende sobre o mundo no qual vive sem qualquer suporte exterior e desenvolve um modo extremamente particular de enxergar a realidade, eximindo-se de qualquer culpa moral devido à completa ausência de um senso de compreensão ou direcionamento. Afinal, a educação de Grenouille é desenvolvida a partir de seu olfato, e do modo como tudo ao seu redor se compara ao seu espetacular dom. Como todo ser humano movido pela paixão, o rapaz não vê nada em sua frente além daquilo que almeja. A câmera de Tom Tykwer passeia a centímetros da superfície de seus objetos de desejo, indo até onde suas lentes permitem para capturar a tez das vítimas e transmitir uma idéia do que se passa na mente doentia do assassino.
A história fascina pela antecipação fantasiosa e pelo desejo inconsciente de que o personagem principal, apesar de todos os indícios, será de alguma forma redimido por suas terríveis transgressões. O perfumista de Dustin Hoffman é praticamente a primeira pessoa a dar-lhe alguma chance de aprendizado real sobre a vida, mas é na figura da bela prometida Laura (Rachel Hurd-Wood) que se depositam todas as esperanças numa demonstração de escrúpulos. Neste sentido, a voz de John Hurt na narração em off meio que ajuda a polarizar a platéia a favor do assassino.
Provavelmente nenhum outro trabalho de 2006 é capaz de causar tanta controvérsia quanto Perfume. Mas não pelo conteúdo essencialmente maquiavélico da história, que "exala" óbvias implicações psicológicas, poéticas, comportamentais e religiosas, algumas por meio de metáforas que remetem a Pasolini ou Jodorowski. Alan Rickman protagoniza, provavelmente, a cena mais controversa do cinema de 2006, em seu momento de decisão diante do brutal assassino de várias moças indefesas. A cena em questão coroa o apoteótico, surreal e surpreendente clímax do filme, a fonte mais intensa de todas as dissonantes opiniões acerca desta adaptação cinematográfica.
Minha opinião é que, dentro do contexto geral, a materialização da grande obra de Grenouille vai muito além do óbvio, e carrega uma carga crítica absurda contra as sociedades hipócritas de todas as eras. A profusão de sentimentos conflitantes e suas belas e nefastas conseqüências (o amor responsável pela morte e a morte como ato sublime do amor) é outra importantíssima faceta da história que também não deve ser desconsiderada.
Em suma, um filme fantástico.
Visto no cinema em 31-JAN, Segunda-feira, sala 3 do Multiplex Pantanal - Texto postado por Kollision em 5-FEV-2007