Fenomenal extrapolação artística idealizada a partir de uma lenda sueca da idade média, este é um dos mais acessíveis e ao mesmo tempo brutais filmes realizados pelo mestre Ingmar Bergman. Numa olhada rasteira, dá para encarar a história como uma deturpação disfarçada do conto da Chapeuzinho Vermelho, marcada por uma tragédia de contornos amargos e um quase insustentável questionamento da fé, tema recorrente na filmografia do cineasta sueco. Estupendamente fotografada por Sven Nykvist, colaborador habitual do diretor, a sucessão de belas imagens é um contraponto que chega a ser psicologicamente agressivo quando colocado diante do conteúdo dramático da história.
A melhor forma de descrever o roteiro é defini-lo como uma tragédia, marcada pela corrupção da pureza e suas conseqüências em conceitos de fé. Em algum lugar da Idade Média, a fervorosa família cristã do fazendeiro Töre (Max von Sydow) vivencia mais um período de celebração da sexta-feira santa. Sua esposa (Birgitta Valberg) prepara a jovem e virgem filha Karin (Birgitta Pettersson) para uma viagem, em que ela deve cumprir uma tradição e levar as velas até a igreja do vilarejo mais próximo. Karin é acompanhada pela serva pagã Ingeri (Gunnel Lindblom), que está grávida e a quem ela trata como igual, apesar de sua inveja doentia. No meio da floresta, as duas se separam e Karin é abordada por três irmãos pastores, que se aproveitam de sua inocência e a violentam. Mais tarde, os três solicitam abrigo a Töre para que possam passar a noite.
O contraste entre luz e sombra da fotografia em preto-e-branco extrapola os limites do esmero técnico e se estende ao drama da donzela. Karin é a luz, é a felicidade, é o fruto iluminado de um lar construído nos mais rígidos preceitos cristãos, é a filha querida de um pai compreensivo e de uma mãe protetora. Ingeri é a desgarrada, a desafortunada, a desgraçada que emprestou seu corpo a um homem sem a bênção de Deus, o peso que deve ser suportado pela tolerante família cristã. Karin é retratada sob o sol, sorridente e bela, enquanto Ingeri aparece sempre na penumbra, arqueada e tensa. Ambas são o oposto uma da outra mas, quando a tragédia acontece e os estilhaços de suas realidades são recolhidos, percebe-se que as essências das duas não são assim tão diferentes. O preço a ser pago por tal revelação é alto, assim como o remorso e o arrependimento.
Não é só o impacto da crueldade humana, não importa de onde ela se origine e quais são suas causas raízes, que faz de A Fonte da Donzela um espetáculo que choca pelo modo como Bergman captura os rostos, os atos, as reações e o arrependimento de seus personagens. O tema já é capaz de causar revolta por si só, mas o que realmente faz a diferença é a presença de uma criança no grupo de párias que causa a desgraça da família cristã. É através dela que uma grande parte de toda a miríade de emoções conflitantes vem à tona, em que a perplexidade diante do ato desumano, o remorso natural (que aflora mesmo que ele mal tenha discernimento da gravidade do fato) e o objeto do ódio vingativo encontram seu ápice. E, para quem acredita que o diretor desloca suas câmeras nos momentos mais tensos da história, sinto dizer que trata-se exatamente do contrário. O sofrimento está lá, em cada semblante, em todos os cômodos, em todos os olhares perdidos em meio ao desespero provocado pelo próprio homem. A figura do mendigo (Allan Edwall) que se dirige ao garoto e lhe atormenta a alma é a única incógnita narrativa do filme, talvez o único toque da surrealidade onírica tão característica de Bergman.
Max von Sydow entrega uma interpretação digna do Oscar que o filme recebeu, na categoria de melhor filme estrangeiro. O ator preenche seu personagem com uma austeridade quase heróica, para depois subvertê-la ao sucumbir perante o desespero de uma situação literalmente insustentável, numa performance assustadora marcada por seqüências memoráveis, como nas cenas em que ele se prepara para empreender sua vingança. As conseqüências de suas ações conduzem o drama a um desfecho catártico e poético, que tenta diluir a sensação de revolta mas não consegue sequer aliviá-la, encerrando um dos filmes de partir o coração mais contundentes de toda a história do cinema. Se a fé pode ser recompensada no final das contas, somente quem a perde e a recupera é capaz de dizer com certeza.
Os extras do DVD se resumem a uma galeria de fotos de vários filmes de Ingmar Bergman e biografias do diretor e de Max von Sydow.
Texto postado por Kollision em 4/Agosto/2006