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O Farfalhar Próximo

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A espessa névoa que escapa através dos poros do solo não é suficiente para encobrir a silhueta que insiste em pairar sobre o meu domínio. Eu a vejo entre espasmos de tempo e espaço ditados pelo vento, pelo clima, pelas folhas e pelos sons que invadem sentidos cada vez mais saturados por sensações tão díspares quanto a afeição, a indiferença e o medo. Sinto o farfalhar remelento e úmido à minha direita como a parede arenosa sente a passagem da tinta a óleo que a encobre, mas em alguns ciclos lunares rachará e novamente a deixará respirar.

Quando a escuridão encobriu o que diante de mim se eleva, o horizonte crepitava em estalos entrecortados de luz, cada um deles minimamente diferente do outro, em meio a tons de azul e cinza que, por mais maculados que estivessem, jamais desvaneciam ante a fúria das faíscas que a tudo tentavam corromper. Quem poderá dizer se aquilo não era de fato um sinal do que estava por vir, incompreendida e agora saudosa manifestação do caos a serviço de uma mente poética que infelizmente estava entorpecida demais para compreender? Aquilo que vemos não é geralmente um mísero décimo do que deveríamos, e por isso não me martirizo por um erro que estava fadado a acontecer. Um tropeço que só seria evitado caso um dos lados obscuros e muito pouco acessados da minha psiquê estivesse mais desperto que os outros. A percepção surreal necessita de inspiração, e a vida a partir do século XXI é acelerada demais para permitir tal luxo a meros mortais.

Começa a fazer frio, mas ainda não consegui dar um passo sequer. As lufadas de vento alternam-se ao meu redor, como se eu passasse a ser seu epicentro. Gotículas de orvalho voam em minha direção, meus cabelos grudam em minha nuca e a superfície sob meus pés parece girar ao som agudo da tempestade que se aproxima entre as frestas das passagens marmóreas. Todas as estrelas desapareceram, somente a lua continua sua solitária luta em meio a espectros negros que não param de mudar de forma.

— Venha — sussurra a voz dentro da névoa.

Como nos mais sufocantes pesadelos, minhas pernas parecem presas a bolas de aço dotadas de correntes com elos de uma polegada de diâmetro. Tento esticar a mão e romper o nevoeiro, sem encontrar nada para tocar. E que esperança vã fez-me acreditar que eu teria conseguido sequer resvalar em algo sólido? Que haveria algo para mim além da ilusão? Que eu tinha ouvido uma voz real, justo naquele tão familiar recanto de ausência, naquele lugar estéril e abandonado à sorte do tempo, onde mesmo o mais ignóbil réptil conhecido recusa-se a rastejar? A insignificância torna a assumir sua devida magnitude, devolvendo-me a um conforto ao qual estou mais acostumado do que me dou conta.

— Tente de novo — volta a sussurrar a voz.

— Não vale a pena — retruco, surpreso por, de repente, descobrir que tenho voz.

— Você precisa disso. Mais do que ninguém, você sabe que sim — e só então percebo que estou dialogando com uma voz feminina. Timbre adocicado, livre de hesitação e mais macio que a pétala mais tenra do que já foram um dia os jardins suspensos da Babilônia. — Não posso esperar muito mais, você sabe.

Imediatamente, a névoa começa a desvanecer. O vento diminui de intensidade, os espectros negros movem-se para longe e pontos outrora cintilantes recuperam sua importância num firmamento cada vez menos opressivo. E o desespero começa a se insinuar como uma serpente a se esgueirar entre meus ossos, propelindo-me adiante apesar da dor lancinante. Sinto como se não caminhasse há séculos.

— Ainda está aí? — pergunto, trôpego, à medida que o entorpecimento começa a me abandonar e as passagens marmóreas se afastam numa espiral descendente.

Não há resposta, apesar da voz continuar ecoando em meus sentidos e marcando-os como uma cicatriz na córnea. O desespero é substituído por resignação, e a indiferença de uma antiga e insípida realidade volta a atingir-me como uma bigorna.

Texto postado por Kollision em 15/Novembro/2004