Uma bolinha vinha rolando a ribanceira do milharal seco, redondinha, revirando a terra seca que se projetava no ar com graça vespertina. Bateu num tronco em decomposição, espalhando lascas úmidas e carregadas de fungos gosmentos, caindo ao lado de um gigantesco pé de jatobá.
Os fungos chamaram a atenção de um sapinho adolescente que coaxava perto do tronco, triste pela oferta natural de besouros e efemérides estar tão escassa naquela época do ano. Curioso com aqueles pedacinhos de madeira cheirosos que caíram ao seu lado, ele puxou um deles com a língua. "Hum, saboroso até!", pensou. E comeu todos. A seguir, saltitou, saltitou e chegou à beira de uma lagoa de chuva batida e barrenta, sentindo uma irritante tontura. Algo arranhava sua garganta. Mal sabia ele que os fungos da madeira que havia engolido eram venenosos, e já começavam a atuar em seu sistema nervoso central. Não deu outra. Após revirar os olhos por meia hora, padeceu semi-morto com a barriga pra cima à beira da poça d'água.
De manhã, quando chegou Joãozinho, o sol brilhava inclemente sobre o prado esvoaçante. Ele viu o sapinho quase morto, já um pouco inchado e com um pedaço da língua rígido e sujo de terra para fora da boca. Curioso, pegou o bicho com as próprias mãos, levando-o para debaixo de um coqueiro. Tirou do bolso um olho-de-boi que pegara na floresta no dia anterior, esfregou no muro e queimou a barriga do sapinho sem dó nem piedade. O bicho estremeceu, mexeu as perninhas pela última vez e morreu. Joãozinho decidiu então levá-lo para o jardim de casa, com a intenção de dar a ele uma cerimônia fúnebre. Ele enterrou o sapinho e, sobre o local, colocou uma cruz feita de dois palitos de picolé.
Passadas algumas semanas, começou a crescer sobre o local onde o sapinho havia sido enterrado um musgo. Verde, como aquele que cresce sobre pedras úmidas de cachoeiras, escorregadio e um pouco irritante ao toque. O musgo cresceu, cresceu e cresceu, da noite para o dia. Cresceu tanto que tomou conta da casa de Joãozinho. Quando ele e sua mãe acordaram, não puderam sair de casa porque toda ela estava coberta com o musgo verde. Uma parede intransponível de musgo, que ninguém do lado de fora e muito menos do lado de dentro conseguia quebrar.
Joãozinho teve então uma idéia maluca que fazia sentido. Cavar o chão, fazer um túnel e sair do outro lado. Ele e a mãe cavaram, cavaram e cavaram, começando do lado da pia da cozinha, onde talvez o chão fosse um pouco menos duro. Quebraram o piso e usaram colheres e as ferramentas que acharam na antiga caixa do pai desaparecido do garoto, que havia estranhamente sumido alguns anos antes sem dar nenhuma explicação.
Uma semana eles passaram cavando. As mãos de Joãozinho e de sua mãe já estavam quase sangrando, gastas e cheias de calos. Manchas escuras começaram a aparecer em seus corpos, o que preocupou um pouco a mulher. Sem energia elétrica, eles tiveram que passar aquele período terrível em total escuridão, numa penumbra que cobria tudo de forma implacável. Quando estavam prestes a sair nem mais falavam um com o outro, apenas emitiam monossílabos e grunhidos desconexos, de tão cansados que estavam.
Quando os dois finalmente saíram do outro lado, viram que tudo estava esquisito. Havia folhagens gigantes de dois metros de altura que impediam a passagem deles pelo próprio quintal! Besouros do tamanho de uma melancia passaram voando diante dos dois como grandes gansos rumo ao sul. Um cheiro úmido invadia o olfato de Joãozinho e de sua mãe, como água infiltrando-se na areia seca. O vento batia nas folhas gigantes e fazia um som que nunca tinham ouvido antes.
Olharam um para o outro com dificuldade, ainda desacostumados à claridade noturna que vinha de cima, por entre as folhas gigantes. "Ribbit", disse Joãozinho. "Ri-i-i-ibbit, ribbit", replicou sua mãe. Saíram pulando por entre a relva molhada e foram à torneira que vivia vazando água sem parar há dias.
Quando Joãozinho avançou para sorver um pouco da água, sentiu uma forte batida nas costas. Endireitou seu corpo roliço e seboso, olhando para cima, e viu um garoto raquítico, com cabelinho de tigela e calção surrado, segurando um pedaço de pau numa mão e, na outra, uma bolinha marrom com uma faixa preta no meio. Estranhamente, aquela visão lhe era familiar.
Ao longe, podia-se ouvir o som de uma bolinha rolando o declive da rua, carregada pelo vento trazido por uma tempestade. Livre da sensação de medo, a queda e o ricochete não pareciam mais tão temíveis para o garoto, que deixou-se pender sobre o muro e ser levado pelas correntes de ar, pensando:
"E daí se nada faz sentido mesmo?"
Texto postado por Kollision em 28/Setembro/2004