Idealizado a partir do livro homônimo de Vladimir Nabokov, e com roteiro creditado ao próprio, Lolita aparece dentro da filmografia de Stanley Kubrick como o mais polêmico de seus trabalhos, ainda que o texto original de Nabokov tenha sido drasticamente alterado quando da realização efetiva do filme, de acordo com várias fontes. No início dos anos 60, a demonstração de qualquer coisa remotamente associada à pedofilia era algo sobre o qual a censura mantinha olho vivo. Controvérsias à parte, fica claro hoje em dia que Kubrick conseguiu burlar tal restrição com a classe de sempre, mas isso não deixa de ser um imposição que amarra boa parte do que seria considerado parte essencial da história.
Lolita é uma pré-adolescente de 14 anos, de olhar encantador e trejeitos inocentemente sensuais. Ela dá nome ao filme e preenche a alma do professor Humbert (James Mason), um escritor que acaba de chegar da Europa para lecionar nos Estados Unidos e hospeda-se na pensão de Charlotte Haze (Shelley Winters), a mãe da moça. Humbert apaixona-se assim que põe os olhos na garota, colocando todos seus sentimentos num diário que pode se tornar sua ruína e fazendo de tudo para ficar perto de seu objeto de afeição, até mesmo contrair matrimônio com Charlotte. Mas seu plano não sai bem como esperado. Ao redor de sua redoma obsessiva está o também escritor Clare Quilty (Peter Sellers), uma figura excêntrica que vira e mexe se intromete entre ele, Charlotte e a adorável Lolita.
Exercício sutil sobre a obsessão sexual, retrato amargo de uma criatura condenada por essa obsessão e uma ode à tenra beleza feminina e seus irresistíveis encantos. É quase possível sentir pena do personagem de James Mason, um homem normal até o último fio de cabelo, sem atrativos físicos ou posses a que se poderia atribuir o fascínio recíproco de uma adolescente com os hormônios em franca ebulição. Como culpá-lo pela arapuca na qual ele é irrevogavelmente tragado quando Lolita lhe dirige o olhar, no momento em que este está prestes a desistir de alugar o quarto na pensão daquela mulher pegajosa? Poderia ela corresponder àquele amor que vai contra qualquer regra moral da sociedade como eles a conhecem?
O maior desafio de Stanley Kubrick era colocar na tela o sentimento de desejo irrefreável e a eventual consumação dos anseios do personagem principal sem ofender o rígido código da censura, que impedia o cineasta de tentar qualquer seqüência mais ousada. E esta é a única coisa passível de contestação em todo o filme. Na falta de cenas mais calientes entre o coroa e a imberbe adolescente, o jeito foi lançar mão de fade-outs nos momentos chave, enfatizar o conflito interno do protagonista e retratar a reação de terceiros acerca do relacionamento escandaloso. A sutileza é o mote de toda e qualquer conduta libertina ou sexualmente avançada. Neste quesito, o personagem de Peter Sellers (genial como sempre) é um fator de conflito que sustenta um enigma que persiste durante todo o filme, criado imediatamente após sua explosiva seqüência inicial (o derradeiro encontro entre Humbert e Quilty).
A espiral de fixação na qual Humbert mergulha pode ser trágica, mas vem pontuada com doses razoáveis de humor negro. Sue Lyon, selecionada entre quase 800 jovens atrizes para viver Lolita, entrega uma performance na medida do possível provocante e inocente, como pretendia Kubrick. Não sei se mais alguém compartilha da minha impressão, mas achei que James Mason tem aqui um timbre de voz bastante parecido com o do ícone do horror Vincent Price. Sua personificação do homem médio, completamente à mercê de uma fascinação cega, jamais sai do tom neutro e vulnerável esperado de um bode velho apaixonado. Pobre coitado.
O trailer original da produção é o único extra na edição em DVD da Warner.
Texto postado por Kollision em 9/Janeiro/2006