Existe um grande problema inerente ao sucesso, que traduz-se geralmente na criação e na especulação crítica capaz de criar expectativas infundadas, principalmente quando este sucesso está relacionado a alguma área de desenvolvimento criativo. Dan Brown, escritor que ficou famoso praticamente da noite para o dia com o sucesso do livro O Código Da Vinci, repousa sobre os louros de seu trabalho e colhe os cifrões angariados por um fenômeno de raros precedentes na literatura mundial. A potencialização de seu sucesso logo se transferiu à esfera cinematográfica, que se materializou num longa-metragem dirigido por Ron Howard e converteu-se num dos filmes mais aguardados dos últimos tempos. Diferente de Brown, portanto, Howard teve que lidar com expectativas como nenhum outro diretor talvez o tenha feito nos últimos anos.
Lidando com uma mistura explosiva de fatos históricos e ficção, foi mencionado várias vezes pelos entendidos que a história de O Código Da Vinci, da forma como foi concebida por Dan Brown, já era praticamente um roteiro esperando para ser filmado. Akiva Goldsman, colaborador habitual do diretor Ron Howard, pôs a mão na massa e entregou um roteiro adaptado que recebeu aprovação para filmagem até mesmo dentro do museu do Louvre, em Paris, onde boa parte da trama de passa. Alguns dos papéis foram claramente disputados a tapa por famosos de Hollywood e, para o personagem principal, Howard não se fez de rogado e convocou seu confiável coladorador de outras empreitadas Tom Hanks. Portanto, o filme tinha plenas condições de ter uma identidade própria que o distanciasse do tão alardeado romance.
Há quem não tenha lido o livro. Como eu, por exemplo. Assim, a trama do pesquisador Robert Langdon (Tom Hanks) era completa novidade para mim. Em Paris para uma conferência em torno do lançamento de seu novo livro, ele é subitamente retirado de sua rotina à noite pelo capitão de polícia Bezu Fache (Jean Reno), que o convoca para auxiliar na análise de um misterioso assassinato ocorrido dentro do museu do Louvre. A vítima é o curador do museu, e as circunstâncias de sua morte não poderiam ser mais anigmáticas: estirado no chão como um famoso desenho de Leonardo Da Vinci, cercado por mensagens indecifráveis escritas com seu próprio sangue. Quando a investigadora francesa Sophie Neveu (Audrey Tautou) chega e diz que Langdon será preso por Fache, os dois iniciam uma corrida contra a polícia para decifrar as mensagens do falecido, que é também o avô de Sophie. Em seu encalço aparece o ameaçador monge albino Silas (Paul Bettany), membro de uma divisão extremista da Opus Dei, liderada pelo bispo Aringarosa (Alfred Molina). Se a Opus Dei luta para manter seguros os interesses do Vaticano, os guardiões do Priorado de Sião só têm como objetivo proteger os supostos descendentes de Jesus Cristo, frutos de um terrível segredo que pode destruir a igreja. Segredo este que põe em risco as vidas de Langdon e Sophie.
Ron Howard é um diretor que sempre agradou mais às massas que aos críticos. Tomado geralmente como sentimental demais, com estilo muitas vezes mecânico e carente de ousadia. O que ocorre, no caso, é que Howard faz parte daquele grupo de cineastas capazes, sim, de desenvolver um bom trabalho, mas sempre com base no que chega às suas mãos sob a forma do roteiro. O Código Da Vinci consiste num mistério climático que lida com temas de apelo universal, o que por si só já é garantia de interesse para qualquer platéia ávida por entretenimento. Como se isso não bastasse, a trajetória de Robert Langdon dentro dos meandros escandalosos que afirmam que Jesus Cristo e Maria Madalena eram casados e geraram uma prole é um convite irresistível à polêmica, principalmente aquela decorrente da religião exercida da forma mais intolerante e extremista. Mas o que sobra quando tal polêmica é varrida para debaixo do tapete e tudo o que temos é uma história, um grupo de personagens mais ou menos interessantes e um filme?
Basicamente, um suspense somente razoável cuja história utiliza elementos certeiros que cutucam temas polêmicos com vara curta, apresenta visíveis problemas de ritmo e se estende além do tempo que seria aceitável. A exposição em muitas passagens é verborrágica, quase didática, mas pelo menos não cai na categoria do desinteressante (principalmente para quem nunca teve contato com o livro). Ao se analisar as performaneces do elenco, o mais triste é constatar que Tom Hanks é constantemente ofuscado por seus companheiros de cena, infelizmente graças ao tratamento dado ao seu personagem, um homem perdido, sem muito diferencial carismático e extremamente reativo durante quase todo o tempo de filme (um problema que acometeu também outra adaptação literária de peso, os dois primeiros filmes do Harry Potter de J. K. Rowling). Em contrapartida, sir Ian McKellen, na pele de um pesquisador que ajuda a dupla de fugitivos a desvendar o mistério, demonstra porque é um dos maiores atores em atividade no cinemão americano. A caracterização de Paul Bettany como o monge albino Silas ficou bastante convincente, enquanto Audrey Tautou ajuda a imprimir leveza a um elenco de performances pesadas e predominantemente masculino.
Apesar da carga de "blasfêmia", como muitos insistiram em demonstrar através de protestos e boicotes, o filme de Ron Howard faz o possível para não crucificar ninguém, principalmente a Opus Dei, uma organização real cuja existência foi divulgada como nunca graças ao rebuliço em torno do filme. O roteiro põe panos quentes onde pode, jamais deixa de lado a idéia de que ninguém é o que parece ser na história e aparentemente modifica trechos do livro que ajudam a diminuir a carga de controvérsia religiosa. Separando literatura de cinema, e dentro da estética do filme, é preciso reconhecer que isso não faz lá muita diferença. Mas não há dúvida de que a carreira de O Código Da Vinci, o filme, será sempre marcada por um estrondoso sucesso. Financeiro, é claro, pois religião dá exposição, ibope e muito dinheiro no bolso.
Texto postado por Kollision em 22/Maio/2006