O drama existente na história concebida por John Le Carré e filmada com gabarito inconfundível por Fernando Meirelles não tem os atrativos necessários à platéia média que vai aos cinemas. O tema é gélido, insosso à primeira vista, e parece não despertar uma sensação mais relevante que um bocejo. Um diplomata como personagem principal, conflitos políticos e escândalos de uma indústria sobre a qual muita gente não presta muita atenção, a não ser nos momentos de aperto? O lado interessante disso é que, encarado desta forma, é quase impossível não perceber que O Jardineiro Fiel possui uma semelhança louvável com O Informante (1999). E, assim como no longa de Michael Mann, o trabalho de Meirelles surpreende pela capacidade de cativar a platéia com base numa história sólida e bem contada.
Justin Quayle (Ralph Fiennes) é um diplomata inglês medíocre que não se sobressai muito em seu trabalho. Sua maior paixão é cuidar de seu jardim, até o dia em que conhece a ativista Tessa (Rachel Weisz) e com ela se casa. Os dois são vítimas trágicas do destino quando ela morre assassinada durante uma viagem a um recanto distante da África, acompanhada do médico e companheiro de trabalho Arnold (Hubert Koundé). Justin é tragado para uma teia de traição (de Tessa, que aparentemente mantinha um caso com Arnold) e intrigas envolvendo o trabalho da esposa, sobre o qual ele mantinha distância e praticamente não sabia de nada. Ele toma para si a tarefa de investigar as circunstâncias de sua morte, vindo a descobrir quem de fato ela era e porque suas pesquisas sobre a presença da indústria farmacêutica nos países africanos eram tão importantes.
Ralph Fiennes tem a performance mais empática que já vi em qualquer de seus filmes. Talvez seja pela fragilidade de seu personagem, um homem aparentemente passivo diante de tudo, que não se altera por nada mas, depois que é chamado à ativa, não hesita nunca em tomar as atitudes necessárias para seguir em frente, sejam elas ações ou omissões. O Jardineiro Fiel é a sua história, mas nem por isso Rachel Weisz deixa de brilhar. A primeira metade do filme gira praticamente em torno dela, enquanto cenas do passado e do presente de Justin se entrelaçam num quebra-cabeças que se torna mais intricado à medida que o lado "thriller" do filme se avoluma. O roteiro envolve o espectador no drama do diplomata em busca da verdade, intercalando o drama, o suspense e o belo e incomum romance num trabalho de coesão hipnótica.
E o romance é o aspecto que, com certeza, mais fará o trabalho de Fernando Meirelles ser lembrado. O que é um feito e tanto, quando se constata que, cinematograficamente, o filme é ousado e atípico. Características marcantes do diretor, vistas no espetacular e internacionalmente aclamado Cidade de Deus (2002), a fotografia de tons documentais e o uso constante de câmera na mão denunciam o sempre bem-vindo olhar estrangeiro (e brasileiro, com orgulho) sobre uma terra pouco fotografada em trabalhos de cinema mainstream. Meirelles valoriza os closes, a intimidade dos personagens em seu cotidiano, as mais diferentes locações, o talento de seu elenco, e de quebra cutuca uma ferida econômica e exploratória que reverbera com estrondo em nossa realidade atual. Daí o tom melancólico e a tristeza que, apesar do espetáculo, permeiam o longa como sangue nas veias de um ser vivo.
Há até mesmo uma seqüência envolvendo galinhas, coisa que já estão querendo rotular como marca registrada do cineasta em seus filmes. Quem assistiu a Cidade de Deus sabe o que quero dizer. Mais importante que isso é observar que, de todos os diretores brazucas que já se aventuraram em produções de capital estrangeiro, Meirelles é o que mais se destacou, e cujo futuro parece ser o mais promissor.
Texto postado por Kollision em 29/Outubro/2005