Narrativa fragmentada, flashes de eventos passados/futuros, edição entrecortada, mistérios que se aprofundam, verdades que se estilhaçam, percepções que não se confirmam e desenlaces que surpreendem. Para um filme que traz enormes influências do cinema lynchiano e de uma estética de aproximação onírico-analítica que nem sempre é capaz de corresponder às expectativas, A Passagem termina sendo uma agradável surpresa dentro do gênero dos suspenses de pesadelo. Um retrato nem sempre passível de descrição de um espetacular devaneio gerado por uma mente levada ao extremo. Ou seria a descrição extrema de uma mente nem sempre passível de compreensão, alçada a uma condição de espetacular anseio?
O diretor Marc Forster tem se mostrado versátil e ousado, seja no drama internalizado de A Última Ceia (2001) ou no lirismo exacerbado de Em Busca da Terra do Nunca (2004). Aqui ele se lança num estilo de filme perigoso, dúbio em suas intenções não-declaradas e extremamente volátil em suas concepções narrativas. E agrada quem aprecia um quebra-cabeças diferenciado, estratificado e desafiador, lapidado para causar deliberada confusão em qualquer interpretação formada para o drama de um rapaz que busca o suicídio como saída para uma aflição misteriosa.
Não há créditos de abertura, ou mesmo qualquer explicação após o que parece ser um terrível acidente de trânsito. Quando o psiquiatra Sam Foster (Ewan McGregor) chega ao trabalho para atuar como substituto de uma colega no tratamento de Henry (Ryan Gosling), um rapaz solitário e problemático, as poucas conexões que este paciente parece possuir com o desastre da cena inicial começam a ser estabelecidas. Mas é só quando ele declara a Sam que irá cometer suicídio em tal dia e tal hora que o psiquiatra percebe que precisa fazer algo mais drástico para ajudá-lo, evitando que ele passe pelo mesmo suplício sofrido por sua atual namorada, a professora de arte Lila (Naomi Watts). Médico e paciente são, então, tragados numa espiral de loucura sem volta.
A cinematografia e a edição são ousados, com uso freqüente de efeitos especiais para expressar transições orgânicas e fluidas entre os trechos da narrativa. A ambientação é extremamente feliz em manter a sensação de desorientação que acompanha o personagem de Ryan Gosling, numa jornada psicológica com visual interessantíssimo. Nuances sutis relacionadas à técnica cinematográfica estão espalhadas ao longo do filme como pistas a serem analisadas visando a compreensão final da história, que ameaça enveredar pelo esoterismo barato perto de seu final mas felizmente finca os pés no chão durante o seu desfecho. Será bom assistir aos extras do DVD após, e somente após, ter assistido ao filme.
Particularmente, gostei bastante do enfoque dado a todo o roteiro, desde sua concepção à sua realização final, num tratamento geral bastante válido e original. E acredito que aqueles que constantemente dão vazão a sonhos de natureza bizarra hão de concordar comigo.
Os extras do DVD se resumem a um especial de 6 minutos com os depoimentos de pessoas envolvidas com o mesmo tipo de fenômeno mostrado no filme e trechos selecionados do longa, com comentários de Marc Forster, Ryan Gosling e de parte da equipe técnica.
Visto em DVD em 17-SET-2006, Domingo - Texto postado por Kollision em 18-SET-2006