Por natureza, o verdadeiro cinéfilo é hoje em dia um ser em extinção. Refiro-me não ao freqüentador regular de cinemas, e sim àquele que ama a sétima arte de uma forma incondicional e constante, fazendo dela parte de sua vida particular com um entusiasmo muitas vezes incompreendido. É inegável que, com o advento massivo da TV, do vídeo-game e da Internet, a 'espécie' cinéfila acabou se reduzindo com o passar dos anos a um grupo restrito que parece viver em seu próprio mundo. E um mundo próprio é exatamente o que Woody Allen cria em A Rosa Púrpura do Cairo, que declama em cada uma de suas cenas uma ode de amor ao cinema, reverberando ainda hoje como um dos bons filmes que ousaram transcender a linha que separa realidade de ficção.
Durante a grande depressão americana nos anos 30, a dona de casa Cecilia (Mia Farrow) ganha a vida trabalhando como garçonete para sustentar o marido desempregado e folgado (Danny Aiello). Sua única válvula de escape é o cinema da cidade, e a mais nova sensação do lugar é o novo filme 'A Rosa Púrpura do Cairo', que por vários motivos ela assiste repetidamente. Sua fascinação é tão grande que arrebata um dos personagens da película (Jeff Daniels), que durante a projeção desce da tela de cinema e vai ao seu encontro, clamando estar apaixonado por ela. O rebuliço é geral, e não tarda a aumentar assim que a notícia chega até os ouvidos dos produtores do filme e do ator que interpreta o personagem fujão.
O desempenho do elenco é ótimo, em especial Jeff Daniels como o herói romântico e deslocado num mundo em que não foi concebido para estar. Seqüências antológicas são a sua inocente visita ao bordel local e, em especial, o momento em que ele deixa a tela em preto-e-branco do cinema e se materializa ao vivo e a cores diante de uma platéia atônita. Do outro lado, em contrapartida, os companheiros de filme do herói apaixonado também adquirem vontade própria e se acotovelam à sua espera, sem no entanto poderem transpor a fronteira do telão.
A fascinação por uma forma de arte que ainda se esforçava para se estabelecer como tal é a força motora do romance, dos conflitos e da beleza poética e metafórica concebida por Woody Allen. Não existe nenhuma grande sacada por trás da história do filme, cujo título nada tem a ver com o cerne do romance entre Cecilia e o personagem fictício que causa espanto. Trata-se de um delírio cinematográfico, uma fantasia com toques de drama e comédia que, acertadamente, se passa no período mágico que corresponde ao nascimento do cinema falado. Afinal, se fosse ambientada nos anos 80, toda a premissa seria um pouco mais difícil de engolir. Em nenhum momento a seriedade com que é recebida a entrada do herói de celulóide no mundo real é perturbada, e qualquer sensação de incredulidade é jogada pela janela a favor do triângulo amoroso que se forma quando o ator que o criou conhece Cecilia e também começa a se apaixonar por ela. Apesar do filme patinar um pouco em seu trecho intermediário, ainda bem que Allen não deixa tudo degringolar ladeira abaixo a partir daí, conseguindo encerrar algo aparentemente sem rumo de forma convincente, ainda que melancólica.
Infelizmente, o único extra que acompanha o DVD é o trailer original do filme.
Texto postado por Kollision em 25/Agosto/2005