Otto & Mezzo é um título atípico e de difícil associação com o tema deste filme, que é, acima de tudo, uma obra de cunho intensamente pessoal do diretor Federico Fellini e, por isso mesmo, de dificílima assimilação. Filmado em preto-e-branco, subjetivo ao extremo, pontuado com devaneios às vezes incompreensíveis e carregado de um simbolismo poético nem sempre evidente, 8 ½ representa um verdadeiro desafio cinematográfico à sua platéia, tão mais difícil quanto menos habituada ela estiver com o conceito de surrealismo em cinema.
Marcello Mastroianni é Guido, um diretor de cinema famoso, prestigiado e prestes a iniciar mais um projeto, desta vez uma ficção científica. Acometido de uma grave crise de inspiração, passando por um tratamento e completamente absorvido numa tempestade pessoal devido aos relacionamentos com sua amante e sua esposa, Guido passa a relembrar e se perder em recordações de seu passado. Passando pela infância e por devaneios envolvendo sua família, seu ofício e as mulheres de sua vida, ele tenta encontrar um sentido em seu novo trabalho, enquanto a construção dos cenários, a reunião do elenco e todo o processo de produção do filme prosseguem sem uma presença ativa de sua parte.
Marcado por uma inicial e irritante característica de fragmentação narrativa, é bem capaz do espectador sentir-se totalmente perdido no início do filme. E ai de quem não tiver afinidade com as obras de Fellini! Surrealista até os mais ínfimos detalhes, 8 ½ convida a platéia a distinguir entre o que é real e o que é imaginação ou recordação na jornada dentro da mente e dos anseios do diretor Guido. Jornada esta que adquire tons de sonho enevoado (como na cena em que ele se vê diante do pai), trágica travessura (na seqüência em que ele, criança, dança com a prostituta), e mesmo viagens impregnadas de um egocentrismo onírico retratado de forma sublime (quando Guido imagina todas as mulheres de sua vida servindo-lhe como escravas num harém). O elenco feminino, por sinal, merece destaque especial. Claudia Cardinale, em papel pequeno, está belíssima. Anouk Aimée e Sandra Milo, como antagonistas uma da outra, parecem mesmo expor a dicotomia interior do próprio Guido. Por não conseguir separar suas duas vidas amorosas, ele permite que elas se aproximem de forma aparentemente imprudente. Abrilhanta ainda o filme a eterna Barbara Steele, mais conhecida como uma das imortais rainhas de filmes de horror.
De acordo com o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, a definição de "surrealismo" é: "movimento artístico e literário de origem francesa, que pretende um automatismo psíquico puro, capaz de dar expressão às atividades do subconsciente sem controle exercido pela razão". A verdade é que, mesmo para quem está acostumado ao surrealismo, 8 ½ é um desafio. A probabilidade de uma primeira sessão do filme ser recebida com um sonoro "que merda foi isso?" é muito grande. Os cortes feitos por Fellini não delineiam a fronteira entre sonho e realidade, deixando a tarefa completamente a cargo do espectador. Além da primeira sessão, no entanto, pode ser que as várias camadas simbólicas do filme se encaixem de forma mais coerente, e os devaneios sejam melhor compreendidos.
O DVD traz um documentário bastante esclarecedor de cerca de 50 min. sobre Federico Fellini, que mostra o diretor em ação durante os processos de direção de alguns de seus mais importantes filmes (principalmente A Doce Vida, Oito e Meio e Satyricon). Há ainda textos com entrevistas de Fellini, biografias dele e dos principais atores de 8 ½ (além de Mastroianni, Anouk Aimée e Claudia Cardinale) e galerias de fotos da produção.
Texto postado por Kollision em 29/Setembro/2004