Com a fama devidamente consolidada pelos dois primeiros filmes de Zé do Caixão, o criador José Mojica Marins partiu para um formato diferente enquanto esperava para rodar a terceira parte da trilogia do personagem de horror mais famoso do cinema nacional. Enquanto a desejada continuação de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, feito no ano anterior, ficaria relegada ao limbo, muitas pessoas passaram a adotar O Estranho Mundo de Zé do Caixão como o terceiro capítulo da saga. Pode até ser, mas o importante a se considerar, no entanto, é que aqui o personagem faz a vez de mestre de cerimônias de três contos, ambientados no peculiar universo do funerário das profundezas.
No primeiro deles, intitulado O Fabricante de Bonecas, quatro larápios (entre eles o diretor Luis Sérgio Person) invadem a casa de um fabricante de brinquedos (Messias de Melo) para assaltá-lo e molestar suas belas filhas. Eles acabam descobrindo de onde vem a beleza das bonecas feitas pelo velhinho. Tara, o segundo conto, é completamente mudo, e mostra a obsessão de um pobre vendedor de balões (George Michel Serkeis) por uma jovem da cidade (Íris Bruzzi), obsessão esta que rompe até mesmo a barreira da morte. O episódio derradeiro, Ideologia, traz uma variação do personagem de Zé do Caixão. Após uma entrevista na TV, o eminente professor Oãxiac Odez (Zé do Caixão escrito ao contrário) convida um de seus entrevistadores (Oswaldo de Souza) e a esposa (Nidi Reis) para comparecerem à sua casa e conhecer as provas de sua ideologia radical a respeito da hegemonia do instinto sobre a razão. O que se segue é um festival sádico envolvendo tortura, desmembramentos e canibalismo.
O filme marca o início da colaboração entre Mojica e o roteirista Rubens Francisco Lucchetti, que escreveu os contos para o cinema a partir de idéias do diretor. Os três episódios são bastante distintos entre si, e trazem uma trinca abusada de temas recorrentes do horror marginal: o estupro, a necrofilia e o canibalismo. A censura foi impiedosa na época, mas ainda bem que o filme foi completamente preservado para as platéias de décadas posteriores. Apesar de não trazer o frescor e o aspecto demoníaco dos longas estrelados por Zé do Caixão, a ousadia dos contos compensa a ausência do bicho-papão de capa preta. Principalmente o segundo episódio, um achado que resume a essência do cinema de Mojica, uma singular alegoria desprovida de diálogos e com grande atuação do egípcio George Serkeis, co-produtor do filme ao lado do diretor.
Embora contenha algumas das cenas mais perturbadoras já filmadas pelo cineasta, o segmento Ideologia é deveras deficiente quando comparado aos demais. Oãxiac Odez não é Zé do Caixão, e sua aparência chega a lembrar bastante um dos personagens humorísticos de Chico Anysio. Enquanto nos dois primeiros contos a nudez é presença constante, a falta dela no terceiro episódio, teoricamente o mais ousado de todos, é uma decepção para quem espera um encerramento bombástico além do grotesco banquete promovido pelo anfitrião da casa dos horrores. Também é tarefa árdua suportar as declamações baratas de Mojica na seqüência de abertura do filme, que versam sobre o nada num discurso completamente sem sentido. Apesar disso, o ponto mais baixo da produção é mesmo a pobreza da edição de som, que em certos trechos fica extremamente abafado e praticamente obriga o espectador a acionar as legendas para poder acompanhar os diálogos direito. Culpa da matriz original utilizada no DVD, que mais parece saída de um VHS empoeirado de fundo de estante.
O DVD, por outro lado, é recheado de material extra, começando por duas faixas de comentários em áudio, uma de José Mojica Marins e outra de seu colaborador Rubens Francisco Lucchetti. A distribuidora deu um jeito de incluir no pacote o segmento Pesadelo Macabro (31 min.), dirigido por Mojica e parte do longa Trilogia de Terror, lançado também em 1968 &ndash na história, homem tem pesadelos onde é enterrado vivo, e procura a solução para o seu martírio em terreiros de macumba. Neste episódio também há uma faixa de comentários imperdível do cineasta. O resto do material consiste de 8 entrevistas curtas com personalidades relacionadas ou não ao filme (Marina Person, George Serkeis e Rubens Ewald Filho, entre outros), entrevista com Mojica, os making-ofs do programa de rádio estrelado por Zé do Caixão e da animação em stop-motion da abertura do DVD, enquete com transeuntes na rua e sua opinião sobre o personagem, 4 vinhetas/contos de rádio narrados por Mojica, fotos dos roteiros de dois projetos da dupla Mojica/Lucchetti, artigo em texto sobre a parceria dos dois, várias galerias de fotos, pôsteres, quadrinhos e fotonovelas baseadas no filme, biografias curtas de Mojica, Lucchetti, George Serkeis, Íris Bruzzi e Luís Person e o trailer do filme, além dos trailers de A Estranha Hospedaria dos Prazeres, Perversão e A Hora do Medo.
Revisto em DVD em 29-OUT-2006, Domingo - Texto postado por Kollision em 2-NOV-2006