Em tempos de O Senhor dos Anéis e Harry Potter, a produção de filmes que adaptam textos que associam o heroísmo à fantasia é algo que não pode ser subestimado, principalmente quando há o dedo "encantado" da Disney no meio do bolo. Para os iniciados não há dúvida de que As Crônicas de Nárnia, por mais semelhanças que possam ter com a saga dos hobbits e elfos, carregam uma identidade própria que pedia por uma adaptação cinematográfica já há algum tempo. C. S. Lewis, o autor da série de sete livros que compõem as tais crônicas, foi contemporâneo e amigo de J. R. R. Tolkien, daí as várias similaridades estéticas dos dois universos. A maior diferença, contudo, está no público-alvo das duas obras, já que Nárnia é um épico com fundo moral claramente direcionado às crianças. Não que adultos não possam desfrutar desta aventura, muito pelo contrário.
Em meio aos devastadores ataques da Luftwaffe alemã sobre a região mais populosa de Londres durante a Segunda Grande Guerra, os quatro irmãos Pevensie são enviados pela mãe para a segurança da fazenda de um tio com o qual eles nunca tiveram muito contato (Jim Broadbent). Durante uma de suas brincadeiras, a garotinha Lucy (Georgie Henley) se esconde num dos armários empoeirados do enorme casarão, vindo a descobrir que ele é na verdade uma passagem mágica para um mundo fantástico coberto de neve. Após fazer amizade com um fauno (James McAvoy), criatura humanóide com pés de cabra, ela retorna ao seu mundo e a duras penas consegue convencer seus irmãos mais velhos a acompanhá-la a Nárnia. A presença das crianças não passa despercebida pela maléfica feiticeira branca (Tilda Swinton), que faz de tudo para capturá-las e impedir que uma profecia antiga se realize e ponha um fim ao seu reinado de trevas e gelo, o que está fadado a acontecer com o ressurgimento do benevolente rei Aslan (o leão com a voz de Liam Neeson).
No contexto geral, o trabalho de Andrew Adamson é extremamente decente. O filme é envolvente, e consegue transmitir com competência a sensação de deslumbramento que acompanha o descobrimento de Nárnia pela meninada, naquela que é definitivamente a aventura em cinema mais próxima do estilo do amadíssimo desenho Caverna do Dragão. Os cenários e o design de produção são magníficos, com efeitos digitais que têm a proeza de não soarem falsos ou exagerados. O padrão de excelência estabelecido após O Senhor dos Anéis é mantido nas cenas de batalha que, obviamente, não contêm sangue e nem decapitações (o filme foi produzido pela Disney, ora bolas).
Para fazer a voz do legítimo senhor de Nárnia foi convocado Liam Neeson, o mentor preferido de Hollywood, num contraponto forte em relação à bruxa malvada feita por Tilda Swinton. Com seu olhar penetrante e muita atitude, Swinton parece ter nascido para ser a rainha do gelo. Quanto à criançada, quem rouba a cena é mesmo a pequena Lucy. Edmund (Skandar Keynes), o rebelde, está sempre à sombra do mais velho e protetor Peter (William Moseley), e o ceticismo de Susan (Anna Popplewell) faz com que todos mantenham os pés no chão. Mas é Lucy quem esbanja carisma, mantendo-se no centro das atenções quase todo o tempo. A garotinha tem futuro, isso é fato.
A única fraqueza evidente de As Crônicas de Nárnia está na guerra entre o bem e o mal mostrada no clímax. Por mais admiração que as crianças humanas possam exercer sobre os seres mágicos e os animais falantes de Nárnia, vê-los empunhando armas e combatendo monstros cuja selvageria parece rivalizar com a de um Orc é absurdo. A seqüência faz questão de relembrar à platéia que o filme é um conto de fadas infantil, coisa que pode ser quase esquecida durante o desenvolvimento da história até este ponto. Nisso reside a qualidade da transposição, que não deixa de lado a subliminaridade cristã do texto de C. S. Lewis e representa um espetáculo de encher os olhos para espectadores de qualquer idade.
Texto postado por Kollision em 3/Janeiro/2006