A exposição televisiva de José Mojica Marins na janela vespertina do Cine Trash da Rede Bandeirantes ajudou a colocá-lo novamente sob os holofotes no final da década de 90, mas foi também responsável pela ridicularização de seu personagem mais famoso. Uma injustiça que deve e merece ser corrigida, começando por este clássico do cinema nacional. Mojica pode ser um mala sem alça nos dias de hoje, mas sua contribuição para o cinema nacional (e mundial, claro) é algo que não pode ser ignorado. Ele foi o primeiro brasileiro a realizar um filme de horror, criando um personagem inesquecível e internacionalmente conhecido entre aqueles que realmente apreciam o cinema fantástico. Zé do Caixão transformou-se com o passar dos anos num ícone genuíno de nossa terra, uma figura de quem muita gente ouviu falar mas nem sequer passou perto de conhecer de verdade no meio em que ele merece ser conhecido, que é o cinema.
Pelo estilo rústico da produção, é quase um milagre o efeito obtido por Marins ao incorporar sua própria criação. Pois o Zé do Caixão é alçado neste filme à categoria de folclore regional, como o Saci Pererê ou o Romãozinho. Compõem sua identidade a indefectível cartola, a capa preta, a barba vistosa, as unhas compridas, a risada debochada que acompanha suas crueldades. Ele abomina as tradições religiosas e as superstições de seu povo, não tem escrúpulo algum em matar o melhor amigo para lhe roubar a namorada, maltrata seus semelhantes por puro prazer e, apesar disso tudo, protege as crianças. Seria interessante vê-lo em dúvida se deveria ou não espancar um adolescente, imaginando se estaria diante de uma criança ou de um adulto...
Na história, o elemento principal é o desejo de Zé do Caixão, agente funerário e espécie de chefão bicho-papão de um vilarejo, de finalmente ter um filho para perpetuar sua linhagem. Sua esposa (Valéria Vasquez) não é capaz de atender aos seus anseios, e a ela ele reserva um destino dos mais cruéis. De olho naquilo que está mais próximo, logo ele arrasta a asa para Terezinha (Magda Mei), a noiva de seu único amigo (Nivaldo de Lima). Ao mesmo tempo em que aterroriza a população local, suas ações são observadas de perto por uma feiticeira atrevida, um quase-clone da cigana-mor da Universal Maria Ouspenskaya (Eucaris de Moraes). No final de sua jornada, ele é visitado à meia-noite pelas almas penadas de todos aqueles a quem assassinou.
Esquecendo-se as baboseiras existenciais declamadas logo no início e durante a cena de loucura do Zé em sua casa durante a tempestade, além da cinematografia pobre coalhada de imagens fora de foco e com iluminação deficiente, a história diverte em sua simplicidade e acerta no que é essencial: explorar a figura do personagem central. Os créditos e os efeitos especiais artesanais são um deleite para os saudosistas e fãs do horror clássico, compensando em grande parte a direção algo teatral de Mojica e o estilo um tanto datado do terror em si.
Podendo ser inserido com honra na categoria de grandes alegorias oníricas traduzidas para o cinema, da qual fazem parte os clássicos de horror das décadas de 30 e 40, À Meia-noite Levarei Sua Alma é obra essencial em qualquer compêndio de grandes filmes do gênero.
O filme é precedido no DVD por uma introdução de José Mojica Marins, sendo que o disco é caprichado nos extras. Os mais úteis são as entrevistas com Mojica e com várias personalidades proeminentes da cultura artística brasileira (Carlos Reichenbach, Rubens Francisco Lucchetti, entre outros), quatro galerias de fotos do filme e dos quadrinhos do Zé do Caixão, o curta-metragem mudo Reino Sangrento (9 min.), feito por Mojica em 1952 e comentado pelo próprio, trechos de seus primeiros e perdidos filmes A Sina do Aventureiro e Meu Destino em Suas Mãos, biografias do diretor e do elenco de À Meia-noite, seu roteiro original, e dois trailers do filme acompanhados dos trailers de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, A Hora do Medo, Perversão, A Estranha Hospedaria dos Prazeres e Inferno Carnal. A encheção de lingüiça fica por conta da filmagem da operação dos olhos do diretor, a reconstituição atual e inútil da cena de estupro de Magda Mei, dois esquetes de rádio (um narrado e outro co-cantado -!- pelo próprio Zé do Caixão) e uma enquete curta com entrevistas de pessoas dizendo se têm ou não medo do Zé do Caixão. Nenhum dos extras é mais precioso, historicamente, que a faixa de comentários comandada pelo diretor.
Revisto em DVD em 27-AGO-2006, Domingo - Texto postado por Kollision em 30-AGO-2006