Indubitavelmente uma das experiências cinematográficas mais originais dos últimos anos, Dogville foi um dos filmes mais discutidos no Festival de Cannes de 2003, mesmo não recebendo nenhum dos prêmios aos quais concorria. A falta de intimidade com a obra do polêmico dinamarquês Lars Von Trier não é empecilho algum à apreciação deste filme, o primeiro de uma anunciada trilogia crítica sobre os Estados Unidos e, antes que qualquer gringo ufanista se aproxime com várias pedras na mão, sobre a pior e ao mesmo tempo melhor faceta do comportamento humano. Usar os EUA como localização geográfica pode parecer oportuno e, sob alguns pontos de vista, justificado, mas isso não representa de fato o cerne da história, que poderia ocorrer em qualquer outro lugar remoto do mundo.
A época do filme é o período pós-depressão da década de 30. A bela e enigmática Grace (Nicole Kidman) chega à pequena cidade americana de Dogville no que parece ser uma fuga desesperada de gângsteres assassinos. Recebida primeiramente pelo escritor Tom (Paul Bettany), uma espécie de líder ideológico da população de 15 adultos do local, Grace decide se esconder na cidade. Através de pequenos serviços e favores, ela faz o possível para conquistar a confiança e a simpatia de todos, que se unem para protegê-la das cada vez mais constantes visitas da polícia. Com o passar do tempo e à medida que o cerco dos perseguidores se fecha, os habitantes de Dogville tornam-se cada vez mais exigentes em relação à sua colaboração na proteção da moça. E nem mesmo a ajuda de Tom, pelo qual ela começa a nutrir um sentimento mais forte, parece ser capaz de reverter a seqüência de infortúnios e humilhação que Grace se vê forçada a suportar.
Dogville é o representante mais próximo que o cinema pode chegar da linguagem do teatro. Toda a história se passa numa espécie de cenário retangular que representa a cidade. Não há paredes, somente delimitações marcadas por giz no solo, mais ou menos como a planta baixa de um projeto civil. Arbustos, móveis e itens da paisagem são substituídos por seus equivalentes desenhados no chão. Não há portas, somente o som de suas maçanetas quando o elenco faz de conta que as abrem e fecham. É neste cenário árido que Lars Von Trier tece sua crônica sobre a mesquinhez humana, sem praticamente qualquer valor vultoso de produção ou mesmo a adição de uma mínima trilha sonora. A música só vem praticamente no final, numa espetada escancarada a um dos períodos mais negros da história dos EUA.
Deixando de lado o movimento ideológico do qual faz parte (que dita, entre outras coisas, que o cineasta deve fazer filmes sem iluminação artificial, com atores desconhecidos e câmera na mão), o diretor teve a seu favor a escalação de um elenco de peso, que conta ainda com Stellan Skarsgård, Philip Baker Hall e James Caan. Diz-se que o atrito com os atores era constante no set. Para o bem ou para o mal, o desconforto que qualquer um deles tenha sentido com certeza transparece no 'prólogo e nos nove capítulos' que compõem as quase três horas de projeção da película. A duração é um exagero que poderia ter sido evitado, já que em alguns pontos do caminho o cenário ralo aborrece um pouco. Noutros, a desolação provocada pela falta de paredes confere um interessante efeito de onipresença observatória, com eventos estarrecedores descortinados ao mesmo tempo aos olhos da platéia, mas não dos personagens.
Em contraponto ao aspecto estético propositalmente tosco (incluindo a fotografia dissonante daquela à qual todos estão acostumados), as piores características interiores de todos os personagens, até mesmo da bondosa Grace, são dolorosamente escancaradas em um trecho ou outro do filme. Trata-se de uma visão extremamente pessimista da humanidade, que aqui incorpora o objeto da máxima 'se você der a mão, ela quer o braço' com tanta arrogância e indiferença que isso faria Victor Hugo se revirar de vergonha das partes mais cruéis de sua obra-prima Os Miseráveis. A redenção, no caso dos personagens de Dogville, está mais perto do que imaginam, com mais significados ocultos do que um simples despojamento de cenários poderia indicar.
Como extras, o DVD traz apenas os trailers de A Sombra do Medo, Monster - Desejo Assassino, Ação Direta, Ripper II, Matemática do Diabo e Vítimas Inocentes.
Texto postado por Kollision em 20/Junho/2005