A maior prova de que muitos cineastas reclamam injustamente de qualquer censura vigente, no sentido de que sempre há um jeito de contorná-la em nome da ousadia, está no cinema marginal japonês da década de 70. A verdade é que os japas são doentios quando o assunto é perversão. E olha que, nos idos daquela década, a lei japonesa era taxativa em não permitir a exibição de cenas com órgãos genitais masculinos ou femininos na tela. O passado cultural dos orientais, no entanto, associado a uma criatividade inspirada pelo ocidente e a uma explosão artística que ainda hoje é influência obrigatória em muitas coisas de vanguarda, serviu para nortear o trabalho de muitos realizadores que não se limitavam a trilhar os mesmos padrões estabelecidos no resto do mundo.
Um dos maiores expoentes desta primeira onda de filmes violentos e eróticos é exatamente este trabalho de Norifumi Suzuki, rebatizado fora de seu país como Star of David ou Beautiful Girl Hunter. O primeiro título é bobo e deriva de uma liberalidade descartável da história, mas o segundo nome reflete muito mais o verdadeiro conteúdo do longa. Temos que ser realistas neste ponto: sua essência é puramente fetichista, e seu público-alvo dificilmente será formado por mulheres ou por quem se impressiona facilmente com um cinema de contornos polêmicos. O conteúdo erotizado ultrapassa, e muito, a capacidade de excitação suscitada por pornografias explícitas despejadas aos montes via Internet e DVDs de qualidade duvidosa. A blasfêmia social atinge a esfera comportamental, cultural e religiosa. E o mais incrível é que o cinema como arte, um aspecto que nunca deve ser esquecido, está presente em cada frame de filme.
O caçador de beleza feminina é Tatsuya, um jovem que acaba de fazer 21 anos, herdou uma gorda herança do pai falecido num acidente de barco e mantém no porão de sua enorme casa uma cúpula de torturas. O cara é fruto de um estupro que revelou a seu pai que a mãe era uma depravada, o que desestruturou a família de tal forma que a mãe veio a se suicidar de desgosto enquanto o moleque crescia apanhando daquele a quem chamava de pai. Identificando-se em nível genético com o estuprador que o concebera, Tatsuya inicia sua campanha de violência ao raptar primeiramente uma ex-companheira do falso pai. Violência, estupro e assassinato tornam-se os itens básicos de seu dia-a-dia, enquanto ele aumenta a sua coleção de mulheres, mantém um relacionamento quase angelical com a irmã e é observado atentamente pelo pai foragido que nunca conheceu.
Para todos os efeitos, o que torna a orquestra de violência perpetrada pelo protagonista do filme algo de imenso apelo é a técnica cinematográfica de Norifumi Suzuki. Quase tudo é enquadrado com um olhar artístico, que valoriza os cenários de tortura e insufla beleza nos atos do serial killer. É óbvio, para muitos, que o filme não passaria de um trabalho "pseudo-pornô concebido por uma mente perturbada". Pornô ele não é, apesar de fornecer muito bem o tipo de estímulo que os apreciadores deste gênero procuram (uma lição para diretores ocidentais que não sabem como fazer cenas de sexo simulado como devem). E a capacidade de perturbar é inversamente proporcional ao quanto o espectador está disposto a mergulhar no festival de fetiche, erotismo, violência e degradação, quase tudo dirigido contra as personagens femininas, que seguem a cartilha cultural nipônica de subserviência e submissão. O espetáculo de devassidão de Suzuki não se dá ao trabalho de desenvolver muito a história básica, e chega a resvalar na necrofilia e na zoofilia nos momentos mais incômodos da fita (o trecho mais polêmico de todos envolve um cachorro). O filme é provavelmente um dos grandes culpados pelo fetiche tão disseminado que os homens japoneses possuem por adolescentes em uniforme escolar, graças particularmente à seqüência da mocinha certinha que é "sexualmente educada" pelo agressor.
A experiência de assistir ao filme, para quem se dispõe a tê-la, pode ser definida como um mergulho erótico e sadomasoquista na realidade de uma mente doentia, que em nenhum outro lugar a não ser no cinema japonês poderá ser encontrada com igual qualidade artística.
O DVD da Japan Shock é região 0 e padrão NTSC (erroneamente rotulado como PAL), traz áudio original em japonês, legendas em inglês e extras magrinhos: somente o trailer e uma raquítica galeria de fotos.
Visto em DVD em 5-MAR-2007, Segunda-feira - Texto postado por Kollision em 11-MAR-2007