O mais independente dos grandes cineastas ataca com tudo o que tem direito em Apocalypto, um olhar entusiástico, brutal e lírico (sim!) sobre o ocaso de uma das várias civilizações seculares que povoavam a América antes da chegada dos espanhóis. Sem a obsessão doentia e a falta de parâmetros que haviam marcado A Paixão de Cristo, Gibson retorna em parte aos tempos de Coração Valente, onde sua visão cinemática única para seqüências de ação reverbera dentro de um roteiro deveras simples, que prima por um retorno à atmosfera dos grandes épicos de aventura do passado com toda a pompa e a violência que a estética atual do gênero permite.
Falado todo no idioma maia, o filme é o resultado concentrado de um esforço obviamente fora do comum de Mel Gibson. Ele reuniu um elenco de completos desconhecidos, muitos deles sem qualquer experiência prévia diante das câmeras, mas com o idioma maia na ponta da língua. Escrita por Gibson e pelo também novato Farhad Safinia, a história é centrada no americano nativo Jaguar Paw (Rudy Youngblood), cuja tribo é atingida e massacrada pela violência atroz de uma agressiva tribo rival. A perspicácia e a bravura de Jaguar é o que o fazem garantir alguma esperança para o filho pequeno e para a esposa grávida (Dalia Hernandez), enquanto ele e seus companheiros são conduzidos até uma enorme cidadela maia para serem sacrificados numa enorme pirâmide construída com trabalho escravo.
Quem já assistiu a Apocalypto e considera o filme um "atentado contra o legado do povo maia" pode parar já de ler este texto.
Às favas com retidão histórica! Se os maias eram avançados ou não, ou se eles eram bárbaros selvagens e canibais, os livros de história podem ser adequadamente usados como fonte de consulta. O costume preservado e repassado por gerações é que, desde o século XV, as conquistas sangrentas de ingleses, espanhóis, portugueses e holandeses devem ser glorificadas, mesmo que o que ocorresse fosse na realidade um massacre em nome da religião e da descoberta de "novas terras", como se o mundo que estes povos desconheciam não tivesse existido exatamente pelo mesmo período em que eles destruíam e pilhavam toda a Europa e a África. Massacrar com a consciência de que outra cultura está sendo extinta e escravizada é algo que só na era moderna passou a ser considerado um ato hediondo. E o massacre sempre existiu, seja de um povo contra si próprio (no caso dos maias de Gibson) ou de um povo em busca de domínio territorial (os tais descobridores e desbravadores estrangeiros).
O próprio nome Apocalypto tem implicações que são bastante claras com relação às sociedades de tribos maias, que com o tempo viriam a ser sistematicamente dizimadas tanto por uma triste corrosão social interna quanto pela inexorável invasão do homem branco. Numa associação rápida e rasteira, o filme é um dos modos de se olhar para o início do fim, e isso fica claro no momento em que o herói da história Jaguar Paw percebe que nada mais será como antes em sua floresta antes pacífica e acolhedora. É na perseverança do protagonista que a mensagem do filme se sustenta, mesmo quando ela é transmitida por meio da violência. E esta, por sua vez, explode dentro de um formato virtuoso que envolve a produção espetacular, a cenografia esmerada e um movimentado trabalho de câmera, tudo empregando tecnologia digital de ponta. Há até mesmo espaço para uma dose de humor maia, que ocorre enquanto a brutalidade não preenche a tela.
Uma das coisas que ficam no ar, principalmente para quem foi tragado pela atmosfera de mistério que cercou o filme antes de seu lançamento, é a estrutura propriamente dita da sociedade maia, traduzida numa imagem de pessoas cobertas de pó branco dos pés à cabeça sobre uma das pirâmides característiicas deste povo. Infelizmente, a história somente resvala neste aspecto, uma vez que é contada sob o ponto de vista de Jaguar Paw, o que acaba aproximando o filme da estética do longa de ação e distancia-o do contexto estritamente histórico pelo qual algumas pessoas equivocadamente esperam.
O importante é que, ao abraçar as próprias raízes como ator de filmes de ação, Mel Gibson entrega um espetáculo de primeira grandeza. Por um breve instante, por exemplo, quando os captores de Jaguar Paw se dão conta de que ele está fugindo e uma perseguição terá que ser feita, a sensação que se tem é de que voltamos aos bons tempos de Mad Max, com toda sua delinqüência e grandiosidade pós-apocalíptica, neste caso tão adequada ao passado quanto ao futuro. Depende somente do ponto de referência, algo que o título do filme já deixa bastante claro logo de cara.
Visto no cinema em 10-FEV, Sábado, sala 7 do Multiplex Pantanal - Texto postado por Kollision em 16-FEV-2007